CCAnálise Dana Martins

Descrevendo personagens sem reforçar um padrão

3.2.19Dana Martins


Você está lendo um livro, vários personagens novos são introduzidos. A pipoqueira. O Bruninho. A Dona Maria. Os homens de terno. E, então, aparece... ela. A "mulher negra." Ou o homem gordo. Seja como for, nós estamos acostumados a ler e escrever histórias sem descrever se a pessoa é branca ou magra, mas sempre que tem alguém "diferente," aparece a tal descrição. Hoje eu quero conversar um pouco sobre as consequências disso.


"Eu realmente não entendo por que autores escrevem indicando a etnia de TODO personagem menos os brancos. Sabemos que isso centraliza ser branco como o padrão, certo? Sabemos que isso é prejudicial, né?" - um tweet que encontrei depois de escrever esse texto que resume o problema

Esses dias vi um tweet sobre escritor carioca que se vê sem sotaque, aí quando descreve gente com outros sotaques em livro escreve de uma forma diferente o jeito que a pessoa fala, o que é uma consequência de ver o próprio jeito de falar como o padrão (eu não tenho sotaque!!!). Não consegui achar o tweet, mas me dei conta de que esse problema é uma ótima forma de entender o resultado de só descrever personagens quando eles são "diferentes."

O problema é simples: se você só altera a sua descrição pra remarcar o que você vê como diferente, você está, de fato, definindo que aquilo é "diferente," ao mesmo tempo que reforça a ideia de que o que não está descrito é o padrão. 

Pode pegar maioria dos livros, ninguém descreve se o personagem é gordo ou negro ATÉ o personagem ser de fato gordo ou negro*. Além disso, se eu escrever "O João chegou, ele é um garoto muito legal lá do bairro." Você vai imaginar João branco e magro.  

Até mais do que isso, a expectativa de que o povo seja branco é tão grande que se você mencionar só uma vez que fulano é negro, a gente ainda corre o risco de ler a história toda como se ele fosse branco. Já vi coisa de gente que leu livro com protagonista negro e só no fim se deu conta. O mesmo serve para todas as minorias. O que mais acontece é de personagem gay que pode até beijar alguém do mesmo gênero na história, pode até falar que é gay, mas tem sempre gente esperando que seja uma fase, que era um momento que o personagem estava confuso e vai ignorar que o personagem é gay.

Um caso famoso é o da Rue em Jogos Vorazes, em que a personagem é negra nos livros e quando fizeram o filme um monte de gente foi pras redes sociais reclamar.

"Aquele momento estranho em que você descobre que Rue é uma garota negra e não a pequena menina loira e inocente que você imaginou."

"O livro diz pele escura, mas não significa negro. Significa pele escura. Muitas pessoas têm pele escura e não são africanas."  


Mas enfim, a questão é que quando você só lembra de descrever a pessoa quando ela é "diferente," é isso que você tá fazendo: reforçando que a pessoa é DIFERENTE. Diferente do que? Do padrão. Cada texto criado assim ajuda a reforçar a nossa ideia do que é o padrão. 

Isso ainda leva a outras consequências, como um certo grupo de gente virar símbolo de um tipo de conteúdo. Afinal, você só lembra de inserir um personagem que não seja branco, magro e homem quando você quer contar uma história que aborda especificamente o que você vê como a experiência desse grupo (muitas vezes, a sua visão estereotipada desse grupo). É por causa dessa forma de pensar que filmes com minorias protagonistas são visto como coisa de nicho, e filme com homem é pra todo mundo. Ou que toda vez que aparece um personagem LGBT+ os autores héteros acham que precisam dar uma justificativa maior pra o personagem estar ali, o personagem nunca pode ser só gay. Precisa de uma explicação pra fugir do padrão!!!

Enfim, retornando ao ao ponto principal: se você só diferencia o que é fora do padrão, você reforça a ideia do que é padrão. Além de ainda limitar certos grupos de pessoas reais a certos tipos de história, o que só contribui pra marginalização.

*eu usei gordo e negro, mas isso serve pra qualquer grupo considerado fora do padrão

Se você quer pensar mais sobre isso, eu já escrevi um pouco sobre "O mito do personagem universal," que é bem parecido com o assunto desse texto só que de outra perspectiva.

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6 comentários

  1. Oi Dana, tudo bem? Então, eu como autora, venho te perguntar uma coisa.... Meu Livro, eu faço a descrição de todos os personagens, independente de gênero, opção sexual, cor de pele e religião, pois fica mais fácil para o leitor entender. Isso vale para TODOS os personagens. Mesmo assim, seria algo racista ou de forma pejorativa? Pois na realidade, se eu descrevo: tons de pele de todos os meus personagens, não tem como eu não citar se ele é negro ou branco ou rosa.....

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    1. Eu estou iniciando nesse mundo e faço a mesma coisa, descrevo todos os meus personagens independente se é branco, negro amarelo ou sei lá rs

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    2. A simples descrição da cor da pele, se preto, branco, amarelo ou outra, da compleição física, se gordo ou magro, da altura, se baixo ou alto, ou qualquer outra característica física, com o fim específico de identificar a pessoa ou o personagem, não vejo como ato discriminatório que possa configurar injúria racial, gordofobia ou qualquer outra forma de discriminação do ser humano, principalmente nas obras literárias na descrição dos personagens.

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  2. Olá, eu estou escrevendo, e eu não dei a descrição exata da aparência de nenhum personagem pra facilitar o público a se identificar com eles, se projetando em qualquer um. Mas agora necessariamente eu preciso descrever uma personagem e ela é baixa e um pouco gordinha, como posso fazer isso sem reforçar algo errôneo?

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  3. Concordo super, eu comecei a ver que todos os tipos de etnias, todas as cores, todos os jeitos, opções, precisam ser incluidas como algo normal e não extraordinário. Obrigada por isso, me tirou muitas dúvidas, de verdade. NECESSÁRIA.

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  4. Ok, mas como eu faço pro leitor saber que o personagem é negro então?
    Eu vim pesquisar justamente pra saber isso.

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