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Clube de Escrita: Personagens contam história

5.2.19Dana Martins


Eu estava aqui pensando sobre o que aconteceu em um jogo de d&d que eu tô mestrando, e me dei conta de que personagens são uma grande forma de contar história sem precisar fazer aquele blocão de texto chato descrevendo o mundo. É isso que eu quero compartilhar com você. 


Se você joga na minha mesa (OI, CAROL), por favor, não leia isso. 


Primeiro, o contexto:

Esse é um mundo relativamente novo que eu tô criando, ainda descobrindo muitas coisas tanto de D&D como jogo e de como é esse mundo. De quebra, os jogadores e personagens deles na história não conhecem muito sobre esse mundo e os lugares onde eles passam. Então como fazer os jogadores conhecerem? Guarde essa pergunta.

Agora corta pra o que aconteceu em si. Os personagens estão em uma cidadezinha menor que eles não conhecem muito, uma cidade costeira em um mundo de fantasia meio medieval. Eles saem de uma mansão submersa onde eles viveram uma aventura para encontrar um bando de pescadores que viram um cachorro morto na entrada da casa (é o cão de guarda que os jogadores acabaram matando horas antes para invadir a casa).

Isso é um detalhe, mas o fato de que eles encontraram pescadores já diz muito sobre esse mundo: pra ter pescador tem praia por perto, a aparência simples dos pescadores diz que não é um lugar muito rico, você já tem ideia um pouco da economia da região. 

Ou seja, só de ter uns caras com uma vara de pesca em uma estrada você já consegue dizer todas essas coisas sobre o mundo sem dizer nada. E mais importante: não é algo que os jogadores* pensem, é algo que eles sentem. Da mesma forma como você sente e sabe que está em um lugar mais rico ou pobre dependendo de onde você anda. E no momento pouco importa que a economia da região possa ser baseada em pesca, mas se no futuro for relevante, eles não vão pensar "cara, qual é aquele fato sobre tal lugar?" eles vão lembrar "nossa, tinha pescadores lá, deve ter pesca!" 

Isso ainda é reforçado quando eles chegam na taberna local e os pratos envolvem peixes, e quando eles olham mantimentos na taberna submersa e é peixe salgado. E, principalmente, quando eles começarem a entrar no interior do continente e encontrarem outros tipos de carne.

*parte explicando o uso do termo jogadores, mas também é parte do texto
Eu estou usando jogadores porque foi no jogo que eu percebi, mas isso serve pra leitor também. Obviamente, existe uma diferença crucial entre um jogo como d&d e uma história no formato de livro (ou filme, ou série), que é o fato de que os jogadores interagem ativamente com o material. Mas isso não só cria um mundo mais rico pra livros, como pode ser útil na história. Por exemplo, é muito mais legal você colocar sua protagonista interagindo com pescadores do que jogar um blocão de texto falando "Em Barbosa a economia é baseada em pesca." Não é impossível, e John Green tem um jeito de falar esse tipo de coisa de forma maravilhosa, mas no geral essa é a diferença entre aqueles blocões de texto descritivos chatos e uma história que parece mais viva. As informações fazem parte da história. O segundo exemplo de ser útil pra história é que, colocando elementos como esses na descrição, você pode deixar o leitor "investigar" a sua história. Sabe quando você tá lendo algo e pensa "hmmm... acho que fulano é o vilão"? Então, é porque você viu que tem água salgada nos assassinatos, você viu o protagonista encontrando peixe na varanda do vilão. Você começa a conectar os pontos. E essa é uma forma de, também, um livro se tornar uma história mais interativa.

Mas bem, não é sobre isso que eu vou falar, nem sobre pescadores. É sobre um personagem específico que me trouxe a essa reflexão.

Os jogadores conversaram com os pescadores e ficaram sabendo que eles tinham mandado um amigo deles ir até a cidade (a casa ficava meio pro mato, afastada) ir chamar os guardas. Logo depois os tais guardas chegam.

Logo de cara tem o contraste da carruagem deles com a carroça velha dos pescadores, porque o sistema de guarda é fornecido por uma cidade maior das redondezas. Eu não tô falando nada, mas a presença deles aqui está dizendo que a tal cidade maior tem uma influência nessa cidade que, pra todos os efeitos, é "independente." E não é qualquer influência, eles são literalmente os guardas da cidade - são eles responsáveis pela manutenção da lei. Qual lei que você acha que eles estão mantendo? A quem eles vão obedecer? A um bando de pescadores com roupa esfarrapada e chapéu de palha?

Novamente, não tenho nenhuma ilusão de que os jogadores pensaram tudo isso vendo uma carruagem, mas em algum nível a informação foi dada. Se no futuro eles descobrirem que essa cidade foi anexada como parte da outra, não vai ser uma surpresa. Os sinais estavam lá. Se por acaso eles acharem que a cidade maior tem uma má influência, está aí a deixa para se meter na política local. Enfim, uma carruagem e um sinal de que o mundo é bem maior que isso.

Então, os guardas chegam com seus uniformes polidos e... chegamos ao personagem que eu queria. Enquanto um interroga, a outra guarda é descrita como alguém com cabelo todo bagunçado, com cara de que foi tirada da cama pra ver isso. Eu até brinco que enquanto a conversa tá rolando ela tá no fundo tomando um "café" pra acordar, com a maior cara de sono e nem aí pra conversa.

No momento, foi uma curiosidade engraçada. Mas é mais que isso. Pra um guarda estar dormindo no meio da tarde, você sente que é um lugar tranquilo, que não acontece tantas ocorrências assim. É um lugar também "relaxado," porque um guarda em serviço está literalmente nem aí e todo descabelado no meio de um chamado. Dá pra tirar mais conclusões ainda, mas o ponto foi dado: Personagens contam história.

Eu não preciso parar tudo e encher os jogadores de dados, eu posso colocar um guarda sonolento. Um pescador na estrada. Uma carruagem até. 

E eu não sei se tô conseguindo passar bem o que está na minha cabeça, mas você consegue ver isso? Um personagem é uma mini-história sobre o mundo. 

Se você encontra uma estudante lendo livros pela rua - você sabe que existem escolas, que existe até chance boa no futuro, porque o pessoal se dedica a aprender pra trabalhar em algo. Tudo bem que nesses anos de merdas acontecendo no país e as desilusões das faculdades fica difícil pensar que ver um estudante significa "existe chance boa no futuro.", mas até mesmo isso é uma mini-história. Você vê um estudante lendo um livro animado, esse lugar pode ser promissor! É um lugar seguro o bastante pra que a pessoa possa sonhar. Você vê estudantes enchendo a cara pra afogar as mágoas... bem. Pois é. E esses exemplos até podem ajudar a dar o tom da sua história.

Enfim, essa é só uma reflexão que eu tive e deu vontade de compartilhar. Vou encerrar dizendo que nem quando eu coloquei os personagens eu tava pensando nisso, talvez porque isso "personagem é história" seja um caminho que vai pra os dois lados. Se você conhece o seu mundo, você sabe o tipo de personagem que está nele. Eu sabia que naquela estrada literalmente o único tipo de pessoa que passaria é pescador, no máximo um bando de adolescentes fazendo merda. Eu sei a relação dessa cidade menor com a maior. O resto só sai de imaginar alguém nesse contexto. 

Pensando agora, acho que do ponto de vista de quem escreve, o fluxo é o de mundo -> personagem. Você conhece o seu mundo, daí você sabe como povoar. Porém, o jogador entra na história pela outra ponta, ele vê as pessoas e a partir delas entende como as coisas são. Pelo amor de deus, não estou dizendo que isso é uma REGRA. Criação existe de todas formas. Mas foi como aconteceu pra mim nessa história.

Seja como for, espero que isso te faça refletir e te ajude a melhorar histórias no futuro! 

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