Eu sou filha de um homem negro com uma mulher branca, não
diferente de muitos outros brasileiros. Mas esse fato e a minha criação fizeram
com que eu não soubesse em que lugar estava em relação a minha cor. Eu aceitava
a denominação parda de maneira ingênua e acomodada, porque enquanto na família
do meu pai, onde todos eram negros, eu não era negra o suficiente para ser
vista como igual, na família da minha mãe, composta de brancos, eu sempre fui a
"moreninha", nunca negra demais.
Uma coisa que hoje eu consigo olhar em retrospecto e pensar sobre é meu lugar enquanto pessoa não branca na família do meu pai. Lá eu era tratada como igual até não ser mais, e mesmo lá ouvia coisas que me incomodavam sem conseguir identificar a raiz daquilo. Hoje consigo: é o lugar onde colocaram o preto. Eu ouvia coisas como cabelo ruim, cheiro de preto, macaquice... da boca das minhas tias (pretas) dirigidas a outras pessoas, e agora percebo que apesar de toda a beleza delas e da autoestima, porque elas são mulheres que sabem o quanto são maravilhosas, suas falas eram compostas de estereótipos e racismo que ouviram a vida toda, e ao invés de combaterem, incorporaram no seu discurso. Às vezes a gente se machuca antes que o outro faça.
Quando digo que lá eu era igual até certo ponto, é que eu
era incluída - meus traços não negam - mas por ser mais clara, era a
"branca" que não sabia x e x coisa. Cada palavra que ouvi ali teve um
impacto que só agora estou começando a perceber, entretanto, nada foi mais
doloroso do que as coisas que ouvi do lado materno.
Começo dizendo que AMO minha avó materna de paixão e só
tenho uma casa pra morar e muitas outras coisas por causa dela, só que minha
avó é racista e não reconhece isso - como todos os racistas creio eu. Essa mesma
avó sofreu muito na vida, uma mulher de 19/20 anos, da roça, vindo para o Rio
de Janeiro, grávida, sozinha, para trabalhar em casa de família, não consigo
chegar perto do que ela realmente passou. Isso não justifica nada, só que eu
consigo observar todo o endurecimento, e não sei exatamente onde, mas os
preconceitos dela foram aparecendo nesse meio.
Racismo é racismo e não tem o "menos ou mais
ruim", entretanto, acredito que a gente consegue reagir de maneira mais
efetiva quando ele é direto, inquestionável. Agora, aquela piadinha, aquele
olhar enojado, parece coisa da nossa cabeça, e nos faz questionar se não estamos
sendo sensíveis demais (não estamos). Esse racismo encoberto é o que faz com
que as pessoas digam que falar de racismo é mimimi, que os negros são os maiores
racistas (já ouvi muito) e que não existe racismo no Brasil. Os negros estão
errados em falar sobre racismo, somos todos seres humanos e não deveríamos nos "dividir".
CLARO QUE NÃO, NÉ |
Essa minha avó tem um compadre que eu odiava, e mesmo eu não reconhecendo o preconceito que sofria, já sabia que era por isso. Toda vez que ele ia visitá-la, ficava me chamando de "neguinha ou negona" e era uma coisa tão escancaradamente debochada, com risadinhas, que vó inclusive não gostava, mas ao invés de deixar isso claro, não dizia nada pra ele. Eu só não ficava perto. Mas tirando esse homem, tudo que sofri de racismo na minha vida foram coisas que nos fazem questionar a vítima, como se nós negros é que estivéssemos vendo coisas onde não tem. Ser sempre a amiga na escola e nunca o interesse
romântico, ouvir que eu não era negra, mas moreninha...não tenho nenhum problema
com a palavra morena, mas ter essa palavra posta num lugar superior, como se
fosse um absurdo ser reconhecida como negra e um sinal de orgulho ser “apenas
morena” era algo que me afligia. Posso contar nos dedos a quantidade de pessoas negras que estavam na minha turma na faculdade. Além disso, ouvi e ouço coisas absurdas, transformadas em opinião/gosto, sobre o cabelo e aparência de pessoas negras. Cada pequena coisinha dessas, é sim, a validação que existe racismo no Brasil e é necessário reconhecer isso.
Ontem mesmo, aconteceu uma cena que me deixou paralisada, e depois com raiva de mim mesma por não ter feito nada. Uma mulher puxou a sineta para o motorista parar o ônibus, mas ele parou fora do ponto, ela não desceu e quando ele recomeçou a andar, puxou outra vez. O motorista parou o ônibus, a mulher desceu e logo em seguida ele começou uma série de xingamentos contra ela, chamando a mulher de feia, horrorosa que a cara dela era estranha, que só podia ser “dessa gentalha”, eu nem tinha entendido o que havia acontecido, entretanto o motorista continuou os xingamentos direcionados a raça e ao gênero da mulher que havia descido e era negra. Eu desci do ônibus logo depois e me senti tão mal. Por que eu não falei nada? Como eu deixei o motorista ofender aquela mulher, que acredito (e torço por isso) não ouviu as coisas que ele dizia, mas, que ainda sim, tocava no ponto do racismo diário que pessoas não brancas sofrem, seja com um olhar, seja com uma pessoa trocando de calçada, seja com frases carregadas de preconceitos. Como eu deixei o motorista ME ofender, porque tudo que ele dizia para ela podia ser claramente dito para mim?
Acredito que uma questão importante a ser discutida é justamente essa, o reconhecimento da sua raça e o que isso diz sobre seus privilégios e lutas. Se perguntarmos para pessoas não brancas quando eles se perceberam "diferentes" seremos cercados de histórias que se assemelham em uns pontos e se distanciam em outros, uns perceberam cedo e outros tarde, com eventos traumáticos ou não. Mas se perguntarmos para pessoas brancas quando eles se percebera brancas, provavelmente ficarão surpresos ou não entenderão a pergunta, talvez seja a primeira vez que esse questionamento foi feito. Não houve um momento de se perceber branca, porque a norma é ser branca, eles estão cercados de iguais na tv, nos brinquedos, no status quo. Discutir o reconhecimento da raça é discutir nossa história, é discutir empatia e privilégios, discutir reconhecimento de raça ao meu ver é um dos primeiros passos para reconhecer o racismo no qual nossa sociedade foi construída.
"Sinto muito, mas se você é um homem branco não tente definir o que é racismo" |
Confesso que não sabia o que eu queria transmitir ao escrever esse texto, ele fez o papel de uma catarse, e achei emblemático que saísse no dia de hoje. Mas qual o papel dele para você leitor? Isso eu não sabia, o que deu essa resposta foram o livro Na minha pele, do Lázaro Ramos e a entrevista que a Djamila Ribeiro e a Tatiana Nascimento concederam para o Lázaro no seu programa Espelhos:
Cada qual tem que falar por si, falar da importância de cada voz, sacou? Que cada voz é importante porque cada pessoa é importante. No limite, para mim, é isso que significa que as vidas negras importam. É que cada vida negra importa, é que cada pessoa importa. E cada pessoa tem uma voz, e essa voz vai falar uma coisa sobre a negritude que é diferente de todas as outras. Mesmo que a gente compartilhe um mar de memórias e de parecências.*
*transcrição feita por mim a partir da fala da Tatiana Nascimento no programa Espelhos.
Então, acredito que esse foi o objetivo do texto, mostrar UMA vida negra, a minha. Que com toda a certeza é diferente de qualquer outra, mas tem suas similaridades, e nessas similaridades tem o desejo de trazer a discussão racial para a superfície. Discussão essa que é de todos nós, todos temos uma raça e é necessário pensar sobre ela, discutir e arrumar soluções para que as discrepâncias sejam diminuídas e os direitos equiparados.
Por fim, termino esse texto com uma "definição" de raça que achei bastante precisa e que contempla toda vivência que descrevi aqui e combate diretamente aqueles que dizem que raça não existe, que somos todos RAÇA HUMANA:
– Muita gente — principalmente quem não é negro — diz que Obama não é negro, é birracial, multirracial, mestiço, qualquer coisa menos simplesmente negro. Porque a mãe dele era branca. Mas raça não é biologia; raça é sociologia. Raça não é genótipo; é fenótipo. A raça importa por causa do racismo. Racismo é absurdo porque gira em torno da aparência. Não do sangue que corre nas suas veias. Gira em torno do tom da sua pele, do formato do seu nariz, dos cachos do seu cabelo.
Chimamanda Ngozi Adichie
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Taiany Araujo
4 comentários
Gostei muito do seu texto pq tbm me identifico em algumas coisas kkkkkk No caso, meu pai é branco mas minha mãe, pode-se dizer é parda (digo isso pq nunca escutei ela dizer que é negra). Por parte de mãe, tenho parentes negros, mas a questão é que mesmo tendo a tonalidade clara (acho que até um pouco mais clara q vc Tayane kkk) e sendo loira (mas um loiro escuro, q nao dá nem para perceber q é loiro, tanto é q alguns amigos meus dizem q é castanho), nunca me achei branca, e até nao aceitava a cor do meu cabelo por conta disso, pq para mim, ser loira é ser branca, se nao sou branca, nao sou loira.
ResponderExcluirAonde quero chegar é q, principalmente por conta do youtube, estou começando a me enxergar como negra. O termo COLORISMO me fez questionar acerca disso. Me considerar parda é apenas uma forma, para mim, de ficar numa posição confortavel, nao no sentido de possuir privilegios na sociedade, mas de não sofrer represálias, seja nos dois lados, principalmente a dos negros.
So sei que isso é muito complexo, ainda estou me desconstruindo a respeito disso. Como vc, há 2 4 anos sou loira e há algum tempo sou negra, pode-se dizer kkkkkkk
4 anos* kkkkkk
ExcluirMuito obrigada pelo seu comentário. O COLORISMO é algo que precisa ser trago a superficie mesmo, inclusive iria falar nesse post, mas acredito que necessite um aprofundamento a parte.
ExcluirÉ exatamente assim que me senti a maior parte da vida. Não ser branca o suficiente para ser considerada branca e não ser negra o suficiente para ser considerada negra.Quando eu perguntava para a minha mãe-que é uma mulher negra- que cor eu era,ela me falava que era parda.Mas o pardo nunca foi suficiente;Acho que me descobri negra quando passei pela transição capilar e percebi que aquele cabelo com muito volume e "difícil" de pentear me deu uma direção para me descobrir negra,e claro com várias literaturas e vídeos do youtube falando sobre negritude que hoje eu me vejo como uma mulher negra.
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