1984
A Revolução dos Bichos
Os livros nos ensinaram, mas parece que não queremos ouvir
14.10.18Taiany Araujo
Eu aceito não saber sobre livros de história - talvez a educação tenha sido deficiente, a minha foi. Aceito não ter ideia da dimensão que foi a ditadura militar nesse país, não saber o que é fascismo, nazismo e qualquer outra coisa que jovens que nasceram a partir de 1985 só aprenderam na escola. Mas eu não consigo conceber a ideia de que as pessoas nunca ouviram uma música dos grandes nomes da MPB, que não viram filmes e mais filmes falando sobre totalitarismo, que não viram séries... simplesmente não aceito que essas pessoas não se deem conta do que estamos vivendo.
Percebo que há vários grupos distintos que (e agora serei esperançosa) não desconfiam para onde estamos nos encaminhando, e um desses grupos é formado com jovens que tem acesso a livros, que já leram todas as distopias que saíram nos últimos tempos, que foram para o cinema assistir cada filme da trilogia Jogos Vorazes. Para esses eu pergunto: Sobre o que vocês acham que essas histórias são?
Dentre as distopias que fizeram a cabeça de jovens nos últimos 15 anos, talvez a mais famosa seja Jogos Vorazes, da Suzanne Collins. Através da personagem Katniss Everdeen, acompanhamos a história de Panem, um país que ocupa o lugar onde antes era a América do Norte, esta por sua vez havia sido destruída por fenômenos naturais e guerras civis. Panem é um país com 13 Distritos e cada um é responsável por uma atividade essencial (agricultura, carvão e etc) comandada pela Capital, que utiliza uma espécie de Reality Show macabro para deixar claro quem manda e o que acontece quando alguém se rebela. Todos sabem o fim do 13° distrito, e ninguém quer ser o próximo.
Ao longo da série fica claro que a Capital é o GRANDE OLHO do mundo, ela não só tudo vê, como decide aquilo que os outros irão assistir. Através da mídia as pessoas observam num misto de horror e curiosidade como suas vidas são "administradas". O povo é controlado com a promessa de algo melhor dado pela misericordiosa Capital, que apenas quer cuidar para que não aconteça uma nova tragédia e dessa forma o Governo se utiliza das necessidades mais vitais da população contra ela mesma. Um discurso bem familiar não é mesmo?
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Indo um pouquinho mais lá atrás, podemos citar outro livro que foi justamente a inspiração para que Collins escrevesse sua obra: 1984, do George Orwell. O livro nos conta a vida de Winston, um homem que trabalha no Ministério da Verdade, lugar que tem a função de '"ajustar" o passado. Ou seja, toda notícia que sai na mídia passa pelo crivo do ministério e se algo vai contra o Grande Irmão, líder supremo que tudo vê e tudo sabe, é alterado.
Na trama, o mundo está dividido em três grandes Estados (Eurásia, Lestásia e Oceania), governados por regimes ditatoriais que alternam eternamente entre guerras e alianças. Além disso, existem quatro Ministérios: o Ministério da Verdade, onde nosso protagonista trabalha, e é responsável pela da manutenção da “verdade”; o Ministério da Paz, responsável pela manutenção da mesma, mas que ao contrário do seu nome, tem ali o espaço onde se orquestra a guerra; o Ministério do Amor, responsável pelo controle daqueles que cometem crimideia (crime de pensamento), os "rebeldes" e o Ministério da Fartura, que se encarregava do racionamento dos alimentícios. 1984 descreve como podemos ser manipulados e trabalhar em prol dessa manipulação sem que isso seja consciente para nós mesmos, e que a primeira coisa que se deve fazer para controlar a população é acabar com sua liberdade de pensamento.
Outro livro do mesmo autor que aborda a questão do regime totalitário é A Revolução dos Bichos. Aqui acompanhamos o que antes seria a solução de todos os problemas dos animais da Granja do Solar, lugar administrado pelo Sr. Jones, um homem cruel que maltrata e não valoriza o trabalho dos bichos que ali vive. Liderados pelos ideais porco Major, e posteriormente impulsionados por sua morte, os animais se rebelam, mas ao invés de combater a miséria na qual viviam, os bichos que alçaram o poder com a promessa de mudança passaram a apresentar um posicionamento cada vez mais repressor e violento contando com o auxílio do exercito de cães.
Enquanto eu escrevo sobre esses livros fico chocada com o quanto essas realidades em muito se assemelham com a nossa, e em como os olhos estão tapados. Ao ler essas histórias, ao assistir The Handmaid's Tale, Star Wars, A Onda eu ficava me perguntando como as pessoas não viram as coisas acontecendo, como deixaram tudo chegar aquele ponto. Hoje me sinto como uma pessoa diante uma multidão dizendo para não irem pra lá, tentando contê-los com meus braços, mas, sendo engolida pela horda de cegos que, acreditando na promessa de justiça, não veem que "vozes inconformadas" fazem mais que uma "mão forte".
Eu cresci lendo e assistindo Harry Potter, acompanhei a luta não só do garoto que sobreviveu, como também do mundo bruxo contra a ascensão de Voldemort, que tratava os trouxas (não bruxos) como lixo, pregava a "pureza" do sangue bruxo, desprezava as outras raças dentro do mundo mágico, e pregava a violência e o medo como forma de controle. Então, quando vejo pessoas que cresceram acompanhando essas histórias ignorando suas similaridades com o cenário atual, fico frustrada e com raiva, porque não é possível que não aprendemos nada com toda essa cultura que consumimos.
Os discursos totalitários muitas vezes parecem pertinentes e visando o melhor para o povo, contudo, o povo não pode opinar nem discordar, e isso fica claro em Toy Story 3, quando Wood e seus amigos acabam parando na creche Sunnyside e conhecem as histórias do urso Lotso e do boneco Bebezão. Ali tudo parece um parque de diversões para os brinquedos com várias crianças com quem brincar, só que isso só é possível ao se enquadrar nas regras do grande e fofo urso rosa: qualquer tentativa de opinião é calada. E assim nos vemos diante uma das cenas mais dolorosas de toda a trilogia que são os brinquedos unidos de mãos dadas aceitando seu destino numa atitude estoica, prontos para serem incinerados.
O acervo da ficção cientifica está repleto de histórias que tem como tema repressão, controle social, o Estado como poder supremo e o povo subjugado às suas leis, e eu me recuso a pensar que só eu e uma pequena parcela da sociedade leram esses livros. Sei que por vezes estou numa bolha, no entanto, o show do Roger Waters estava cheio, e COMO AS PESSOAS QUE VAIARAM OUVIAM AQUELE CARA SEM COMPREENDER SUAS MÚSICAS?
A cultura tem um papel muito importante na formação social, se as pessoas pensam que a arte só existe para distrair, elas estão enganadas, simples assim. E ao longo de TODA a história pensamos e estudamos sociedade através da arte, só que hoje, pela primeira vez, eu desconfio que não tenhamos aprendido nada.
Outros livros que também discutem esses temas:
- Ninguém nasce herói, do Eric Novello
- Os anos da fartura, do Chan Koonchung
- Nós, do Yevgeny Zamyatin
- Fahrenheit 451, do Ray Bradbury
- Admirável Mundo Novo, do Aldous Huxley
- O Conto da Aia, da Margaret Atwood
- A Rainha Vermelha, da Victoria Aveyard
- O alienista, do Machado de Assis
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