Anders Bateva assexualidade

O perigo da assexualidade em um mundo sexual

30.7.18ConversaCult


Um colaborador traduziu esse texto e enviou pra nós por email, e eu - Bells - venho aqui fazer uma breve apresentação dele. Apesar de ser um cara cis falando sobre suas experiências, eu me identifiquei HORRORES com a maior parte das coisas. Talvez seja um tanto pessimista ou tenha alguns conceitos que dá pra debater, mas acho que ele mostra muito bem o que é ser assexual num mundo totalmente sexual.



***

Eu apenas recentemente descobri que sou assexual, e tenho reavaliado minhas experiências de vida sob estas lentes. Para esclarecer, também não faz muito tempo que descobri que a assexualidade era alguma coisa existente, após isto, eu quase imediatamente percebi que eu muito provavelmente era um. Eu não acordei um dia e decidi que era assexual, ao invés disto, eu descobri um rótulo que coincidia com minhas próprias experiências e sentimentos. Até eu me deparar com um artigo de enciclopédia sobre isto, eu me considerava um heterossexual "quebrado", como falarei mais adiante. 

Este texto não é uma reclamação sobre como é dura a vida de um assexual, e como o mundo precisa mudar, ou algo desse tipo. Eu sei (ou melhor, eu presumo) que minha característica é rara, tão rara que eu nem ao menos sabia que ela existia até que eu tivesse 23 anos de idade, e seria incrivelmente injusto se eu solicitasse que a vasta maioria dos seres humanos se adaptasse à minha situação "quebrada". Ao invés disto, este texto tem um simples propósito de informar. Conhecimento e compreensão nunca são coisas ruins. Dito isto, eu absolutamente não posso declarar que estou falando em nome de todos os assexuais (se é que uma coisa desses pudesse alguma vez ser declarada); o conteúdo deste texto é simplesmente minha experiência e meus pensamentos sobre este tema. Para ser mais específico, eu vou falar sobre como eu aprendi e fui introduzido lentamente à realidade da cultura sexual, minhas experiências de relacionamento, e alguns pensamentos a respeito do atual estado das coisas.

Crescendo em um mundo não-relacionável

Eu nasci e fui criado como um Adventista de Sétimo Dia, e como tal, fui mais blindado contra sexualidade durante meus anos iniciais. Até tivemos educação sexual no ensino fundamental, e olhando em retrospectiva, isto foi notavelmente progressista, devido a se tratar de uma instituição religiosa, mas ao ir para o ensino médio, eu realmente não tinha ideia de quão essencial o sexo é na cultura moderna. Uma de minhas memórias mais vívidas do meu primeiro ano no ensino médio foi a professora de Inglês trazendo a boa-nova de que basicamente tudo se resume a sexo. Na época eu pensava que eu era um garoto típico e honestamente não acreditei em uma palavra do que ela disse. Eu me lembrei de ter assistido Friends quando era criança, e apresentei isso como contra-argumento para a declaração dela, ao que ela respondeu "Friends é totalmente sobre quem vai conseguir uma transa". O que eu novamente não acreditei, até que eu assisti um episódio de Friends após a aula e descobri que ela estava certa.


Após isto, eu comecei a reparar em tudo. Parecia que todo enredo de uma série ou filme girava em torno de homens cortejando mulheres. Eu percebi que a maioria dos livros que eu lia envolviam, de uma forma ou de outra, sexo, com frequência sendo esta a motivação principal de alguns dos personagens. Como uma criança, eu não dava muita atenção a isto, mas conforme fiquei mais velho, eu comecei a perceber que isto provavelmente não era uma coincidência. Histórias são mais engajadoras se é possível se identificar com os personagens, e eu comecei a perceber que Sexo-Como-Força-Motriz era aparentemente o aspecto mais identificável, pelo menos para homens. 

Isso me confundiu muito. Novamente, eu me considerava um cara típico, porém não conseguia me identificar com nenhum desses personagens. Mas eu continuei vendo isto em todo lugar. Outro momento que marcou em minha memória foi ler um livro designado para informar adolescentes de ambos os gêneros sobre como se relacionar com o gênero oposto. Um capítulo basicamente se resumia à ideia de que qualquer coisa que um rapaz faz para uma garota é, de alguma forma, um esforço para conseguir transa ou ganhar prazer sexual de outras maneiras. Por exemplo, manter uma porta aberta para garotas era uma maneira de checar as bundas delas. Isto me deixou desconfortável, pois na época eu mantinha as portas abertas para as garotas por achar que era uma coisa educada a se fazer. Eu não tinha interesse em checar as bundas delas; depois disso, eu sempre senti que eu não podia nem mesmo sorrir para uma garota sem me preocupar se elas estavam pensando que esta era simplesmente uma maneira de levá-las para a cama. 

Eu comecei a me perguntar se isso era uma coisa somente com adolescentes, ou se estes livros talvez estavam enviesados contra os homens (novamente, eu me considerava um homem típico), ou informando todos das piores características do gênero masculino em um esforço para evitar situações de estupro, ou algo assim. Mas novamente, minhas experiências me mostraram o contrário. Eu ouvia homens,adultos, dizerem coisas como "Tudo o que eu faço é, de certa forma, feita na expectativa de que levará a sexo". Foi por aí que eu percebi que eu não podia me relacionar com este mundo, esta cultura que me cerca. A sociedade inteira tem este "complô", esta piada interna com o sentimento de "você tem de estar lá para entender", para o qual eu fui, e sempre serei, perpetuamente ausente.

Relacionamentos e agir normal

Durante a minha infância inteira, eu vi a sexualidade humana como uma barra bi-dimensional. De um lado, você tinha os homossexuais, e do outro, os heterossexuais, e todo mundo se encaixaria nesta linha. Como eu não tinha interesse em garotos, mas eu tinha interesse em garotas, eu supus que eu estava do lado heterossexual. No ensino fundamental eu tinha aquele "gostar" ingênuo e descompromissado com algumas garotas, no sentido de que eu sabia que garotos gostavam de garotas, e isto era o que eu supunha que fizesse eu me encaixar. Como era o ensino fundamental, eu não me sentia muito fora d'água, então foi fácil para mim presumir que todo mundo era que nem eu e só seguir o fluxo de como as coisas supostamente deveriam ser.

Quando eu entrei no ensino médio, eu fui para um internato que, fora o fato de me afastar de todos os conhecidos do ensino fundamental, me colocou em uma posição onde eu estava com meus pares todo o tempo. Foi durante estes quatro anos que eu desenvolvi meus relacionamentos interpessoais mais fortes. Eu encontrei metade de meus atuais amigos nesta escola. Note porém, que internato é diferente de uma escola que funciona só durante o dia: você não pode pôr uma máscara durante 8h/dia e então ir para casa e ser você mesmo. Ou você usa a máscara todo o tempo, ou você não a usa simplesmente, e no processo de fazer de uma forma ou de outra, você aprende muito mais sobre você mesmo. Para mim, eu aprendi - apesar de que principalmente após os ocorridos - o que um relacionamento significa para mim. 

Eu conheci duas garotas durante meu tempo ali: uma autora (vou chamar ela de "Emma") e uma artista ("Olivia"), ambas as quais eu ainda considero excelentes amigas. Emma estava ali por um semestre apenas, porém nossa amizade me pôs em contato próximo com a amiga e colega de quarto dela Olivia, com quem eu namorei por mais tempo. Lembre-se de que, nesta mesma época, eu estava aprendendo o que um cara estereotípico estava fazendo para conseguir transa. Eu fiz o meu melhor para afastar este estereótipo, apesar de que não a partir de uma escolha consciente qualquer, simplesmente devido a eu não sentir nenhuma dessas urgências. Eu gostava da companhia da Emma e da Olivia, até buscava por isto, mas nem uma vez eu senti uma necessidade real de tornar nosso relacionamento mais físico. Abraçar era o contato mais físico que eu desejava.


Após o ensino médio, eu fui para uma universidade onde minhas únicas interações com meus pares se resumiam a mais ou menos uma hora em que estávamos na mesma turma juntos. Eu nunca desenvolvi amizades, quem dirá relacionamentos, pois eu tinha tudo que eu precisava simplesmente mantendo contato com Olivia. As coisas com a Olivia culminaram quando ela veio me visitar. Meu padrasto ofereceu pra, se não diretamente comprar para mim, me levar a um lugar onde eu poderia obter preservativos, antes da chegada dela. Eu recusei, já que eu ainda não sentia absolutamente nenhum desejo de ter sexo. Olivia e eu, naquela época, já nos conhecíamos há uns 6 anos, estávamos namorando pela maior parte deste tempo, e esta visita foi a primeira vez que nós ao menos nos beijamos. Um ato iniciado por ela... Foi então que eu me dei conta que algo estava drasticamente errado comigo, e nosso relacionamento lentamente morreu. 

Eu estava satisfeito com nossa conexão emocional. Eu gostava de estar com ela, ir em viagens pela costa, conversar e jogar jogos e assistir filmes. Mas eu não tinha nenhum desejo de fazer nada além disto, nenhuma pulsão para complementar o relacionamento com intimidade física. Em resumo, eu não poderia ser um bom namorado. Após Olivia e eu terminarmos, eu estupidamente tentei reconstruir um relacionamento com Emma. Felizmente para ambos de nós, não tomou 6 anos para este relacionamento morrer também. Como eu não consigo oferecer a conexão física adequada, eu não deveria me engajar em tais relacionamentos, tal qual alguém que não sabe nada sobre medicina não poderia se tornar médico.

O agora e o depois

Se eu tentasse encontrar um rótulo para minha sexualidade, seria "Assexual Hetero-romântico". Eu sou emocionalmente atraído por mulheres, mas não sinto absolutamente nenhuma atração sexual por elas ou por qualquer outra pessoa. Uma boa forma de explicar a diferença entre os dois é conversar pela internet, onde eu posso me sentir em casa. Em um sistema de chat baseado em texto, eu posso conversar, e posso sentir conexão emocional com pessoas sem nenhuma forma da biologia se intrometer. Eu desejo companheirismo intelectual e intimidade mental. Isto não exclui proximidade física, porém. Conversar online não é, de forma alguma, uma substituição de estar na mesma sala, ou viajar juntos, ou escalar até uma cachoeira. Mas o aspecto físico de um relacionamento que eu desejo é aquém do que a maioria das pessoas considerariam que é necessário para um relacionamento saudável. 

Eu sou forçado a concluir que eu provavelmente serei incapaz de formar qualquer conexão significativa e profunda com alguém sem forçar algum de nós a uma situação desconfortável - ou minha parceira será forçada a aceitar algo muito menos do que uma conexão física completa, ou eu serei forçado a fingir isto. Nenhum dos casos é aceitável para mim, já que em qualquer um deles, o relacionamento como um todo está fundamentado sobre falsos alicerces. Assim, sou colocado em uma posição difícil à respeito de minhas interações diárias com outros. Eu me importo com a felicidade das pessoas, e tenho como meu objetivo melhorar as vidas das pessoas que eu encontro. Eu busco sempre ser uma influência positiva nos humores dos outros, de forma que ninguém se arrependa de me conhecer. 

Porém, este objetivo é frustrado pelo conhecimento de que, como um homem, se sou gentil com mulheres, sempre parecerá haver o entendimento de que estou fazendo isto somente para conquistar elas. Não me parece justo ter que andar todos os dias como uma camiseta ou plaquinha escrito "Eu sou assexual, se eu estiver sendo legal com você não é para levá-la para a cama", mas não seria justo solicitar a todos que ajustem seus paradigmas de todo o gênero masculino para aqueles de nós que são assexuais. Eu tenho tentado encontrar maneiras de abordar o tema com minhas amigas, na esperança de que eu possa ser gentil com elas sem que elas um dia esperem que eu cobre retribuição e solicite favores sexuais ou algo do tipo, mas mesmo se isto funcionar, esta cultura ainda contamina minha experiência com as pessoas aleatórias que encontro, para as quais eu desfilar por aí com uma plaquinha declarando minha ausência de sexualidade seria estranho, na melhor das hipóteses.

Tá aí uma boa ideia de camiseta

Quebrado e não-humano

Como meus amigos podem certificar, eu com frequência brinco a respeito de ser um robô. Eu existo, e posso percorrer a vida completamente alheio a este aspecto da humanidade que eu nunca serei capaz de entender. Eu ainda me pego pensando que a importância que as pessoas dão ao sexo é imaginária, que o mundo inteiro está apenas seguindo o status quo. Isto alcançou um ponto onde eu estou perto de legitimamente perguntar "O que é esta coisa que vocês humanos chamam de amor?". Isto soa engraçado, e a primeira vez que eu percebi que meus amigos não pensariam que eu perguntar isto seria estranho, eu até ri sozinho. Mas então eu dei um passo para trás e me dei conta do horror por detrás disto: eu não me percebo como sendo humano.  

Isto não é devido a alguma agenda anti-assexual, ou algum tipo de discurso de ódio. Não é resultado de intolerância ou mesmo de pessoas me desumanizando. É o resultado de eu estar em uma cultura que eu não consigo entender. Toda a cultura me diz que há este aspecto fundamental de ser humano - diacho, de estar vivo - que eu não possuo. Por toda minha vida adulta, eu me identifiquei como uma máquina não-viva, o que é completamente falso. Eu sou humano. Eu desejo relacionamentos íntimos. Eu sou uma criatura social (porém muito menos social do que a maioria), e ainda assim eu me sinto como um alien mesmo em minha própria família. E isto, para mim, é o maior perigo. Alienação não através de intolerância, mas de uma cultura tão dedicada ao sexo que eu legitimamente me vejo como inumano.

Autor: Onychoprion, em 22/08/2015. Traduzido por Anders Bateva.


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2 comentários

  1. meu primeiro insight desse tipo também foi na escola. na aula de literatura na hora de interpretar poemas eu sempre via o eu lírico falando sobre amizade e até achava que poderia ser um poema sobre irmãos e relações desse tipo, mas a professora sempre me corrigia, pois absolutamente TODOS os eu líricos falavam de uma tal "amada", era tudo sobre amor romântico e eu detestava isso. Com o tempo fui percebendo que eu não tinha esse desejo de fazer parte dessa cultura de amor romântico. também passei a achar que tinha algo morto em mim, como se eu tivesse nascido sem um "hormônio do amor", algo assim. Nessa cultura que vivemos, em que o amor romântico e a paixão são tão celebrados (está presente desde em propaganda de margarina até romances clássicos), ver que não sentimos atração sexual nos faz pensar que somos "meio mortos" em comparação com os outros.

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  2. Me identifiquei bastante com esse texto. Cresci numa família que não é de demonstrar muito carinho físico. Não lembro de ter visto meus pais se beijando nenhuma vez quando era pequena. Na escola, convivendo com outras pessoas da minha idade, que descobri esse mundo novo, mas ao contrário deles eu não tinha interesse nenhum em participar dele. Tenho me sentido "de fora" desde então, mesmo agora sabendo que assexualidade existe. Me pergunto se sofri algum trauma na infância, se é problema de hormônio, culpa da minha ansiedade... porque ainda parece que o problema é comigo. Sinto como se vivesse uma experiência de vida incompleta.

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