Uma ideia popularmente romantizada é a de que “o amor vence tudo” e quanto mais penso a respeito, mais problemático me parece. Óbvio que ótimas histórias já surgiram desse argumento. Porém, em um cenário em que, cada vez mais, a questão dos relacionamentos abusivos é identificada e denunciada, é possível perceber uma preocupante relativização de casais tóxicos, em prol dessa mentalidade de que, no fim, o amor solucionará todos os problemas.
Falemos de um casal popular, um dos mais shippados – ou, pelo menos, um que possui uma fandom que até hoje é bastante vocal – de Gossip Girl: Chuck e Blair. A série, como um todo, reproduz diversos discursos errados. Porém, Chair é um dos pontos mais sombrios de toda a narrativa. É aquele “clássico” casal, em que o cara mau se apaixona pela mocinha e é transformado pelo amor em um homem melhor. A diferença aqui, é que a Blair também não é flor que se cheire. Nenhum dos personagens é, aliás. Porém, quando colocamos em uma “balança” os erros de cada um, fica claro que as atitudes maldosas da Waldorf não são comparáveis às do Chuck, que são, de fato, imperdoáveis. Ou, pelo menos, deveriam ser.
Tão romântico... Só que não. |
Chuck Bass, para quem não se lembra, tentou estuprar Jenny e Serena no episódio piloto. Ele falha, contudo, para ele ter, em um período de tempo tão curto, feito isso sem temer as possíveis consequências, a conclusão óbvia é a de que, para ele, aquele é um comportamento comum. O que significa que, em ocasiões anteriores, ele havia, sim, conseguido abusar sexualmente de sabe-se lá quantas garotas. Isso somado a lista de tudo o que ele fez com a Blair, que inclui:
– Abandonar;
– Manipular;
– Abusar psicologicamente;
– Tratar como propriedade;
– Uma cena perturbadora de quase abuso sexual / agressão, que foi justificada pelos roteiristas e produtores com “ele nunca a machucaria de propósito”;
Dentre outros (vários) fatores. Para não ser injusta com o menino Chuck, a parte de abuso psicológico e manipulação é bastante mútua, o que, porém, ao invés de ser um argumento em prol do casal, é na verdade contra: eles despertam o pior um do outro, o que só torna a relação ainda mais tóxica. Ainda assim, Chair terminou a série casados e com filhos. Pessoas assim não são redimíveis e é no mínimo assustador que uma obra tão famosa traga um endgame desses.
Blair: “Louis me pediu em casamento” Chuck: “Você nunca irá se casar com outra pessoa, você é minha” |
“Épico, destino, amor” |
“Ah, mas você está exagerando!” Estou? A ficção tem uma enorme influência no comportamento das pessoas na vida real e graças à romantização da relação dos dois e do personagem do Chuck de modo geral (que é tratado como o “herói trágico”, ou “vilão transformado”), que eu vejo meninas e mulheres compartilhando nas redes sociais imagens que dizem: “Eu queria namorar, mas Chuck Bass me deu uma expectativa irrealista dos homens”. Tipo... Oi?! Se o seu namorado ideal é um Chuck Bass, amiga, nós precisamos conversar. Urgente!
O.k., há quem diga que ele é sexy – ele tem o seu carisma e, para muitas pessoas, isso é atraente, embora não faça o meu tipo – mas como eu disse, ele não é uma boa pessoa! Nem o ator é, vale ressaltar. E aí entramos em outra consequência terrível que histórias assim causa, quando somadas ao machismo já existente na sociedade...
O ator do Chuck, Ed Westwick, foi acusado de estupro (por mais de uma mulher) e cárcere privado. Nisso, muitos vieram em defesa dele e o que mais me assusta em casos assim – esse não é o único – é como o fanatismo se sobressai à lógica e empatia para com a vítima. Por que a mulher precisa ter como provar suas acusações, mas basta o homem negar, para que todos acreditem? Qual a lógica nisso? Até mesmo mulheres saíram em defesa dele e, pior, vi até uma dizer que ele “continuava sendo o amor da vida dela”.
Mulheres que cresceram em um ambiente machista e nunca tiveram a oportunidade ou acesso à informação para que pudessem se desconstruir, acabam contribuindo para a perpetuação da cultura do estupro. O que, apesar de não ser culpa delas, é péssimo. Porque, ei, homens são sim estuprados no mundo, mas as maiores vítimas somos nós. O mesmo se aplica aos relacionamentos abusivos. Isso se deve a algo inegável, que é a posição de poder e privilégio em que eles se encontram. Existe todo um sistema que os beneficia e que normativa certas atitudes, porque “homem é assim mesmo”.
Não me interpretem errado, não estou dizendo que o abuso – físico, sexual e psicológico – não deve ser abordado em livros, filmes, séries, etc. Com os devidos avisos de gatilho, são temas que precisam, dos quais devemos falar, sim. O problema, começa quando naturalizam a violência e romantizam o abuso. Até mesmo a culpabilização da vítima pode ser abordada com responsabilidade, mostrando isso, para então apontarem o quão terrível é.
“Eu sou Chuck Bass”, ou seja um abusador misógino que é tratado como se fosse algum exemplo de homem ideal |
Outro exemplo é Coringa e Arlequina. Apesar de atualmente serem retratados como um relacionamento abusivo e problemático, no filme do Esquadrão Suicida insistiram na romantização que nunca coube ao “casal” que, felizmente, está separado nas HQ’s, com a Harley se tornando mais independente e uma personagem própria, que não vive à sombra dele. No longa da Warner – que, aliás, é bem fraco – optaram por fazer uma abordagem errada, na qual mostram o palhaço do crime como alguém que se preocupa com a namorada e a quer por perto, ainda que seja explicitado que a loucura da vilã tenha se originado dos abusos e tortura sofridos. Além, é claro, de ele exigir uma “prova de amor” da psiquiatra, que acaba se jogando em um tonel de ácido.
Nos quadrinhos, a relação é ainda pior. A cena do tonel veio diretamente deles, com a diferença de que no filme, Arlequina se joga por vontade própria – tendo sido influenciada por ele – enquanto no original, ela é jogada. Harley sofreu diversos abusos do Coringa ao longo dos anos, em todos os universos, desde a sua origem na série animada da década de 90. A abordagem no desenho era mais leve, sim, mas os abusos estavam ali. Físicos mesmo. Mesmo assim, as pessoas ignoram tudo isso, e agem como se os dois fossem algum tipo de meta de relacionamento, argumentando que é justificável, pois são vilões.
E, de fato, o Coringa é um ótimo vilão. Mas de maneira alguma, a relação dele com a Arlequina é algo, senão abusiva e errada, que não deve ser apoiada. É estranho que insistam em shippar os dois, quando há outras opções de interesse romântico para a vilã, com outros vilões (ou até com o próprio Batman, caso queiram) que são muito mais saudáveis e recíprocas. A melhor é, com certeza, a Hera Venenosa. As duas foram amigas desde a série animada, sempre com um subtexto ali, até que em dado momento dos Novos 52, a DC decidir confirmar que a relação das duas é sexual / romântica, além de serem BFF’s. A verdade, é que hoje Harley e Ivy são mais anti-heroínas, do que vilãs de fato. Assim como o Deadpool, da Marvel, não é bem um herói. Inclusive, uma vez vi umas fanarts de Harleypool, e achei que seria um crossover interessante. Mas meu otp para a Arlequina sempre será a Hera. O que elas têm é mútuo, sincero e muito bonito. Mostrando que pode, sim, existir uma relação saudável entre vilões.
Um verdadeiro otp |
É isto. |
Os exemplos seguem infinitamente, já que foram inúmeros os casais que foram pintados de belos e românticos, quando na realidade são abusivos. De 50 Tons de Cinza à um dos “clássicos” romances de Nicholas Sparks, Diário de Uma Paixão. O Noah ameaça se matar caso a Allie não aceite sair com ele, caso não se lembrem. Aliás, esses casais “ioiô”, que estão sempre brigando e reatando, costumam ser muito shippados. Parece que um casal ter química virou sinônimo de resolver todos os problemas na base do sexo e viver entre tapas e beijos. O que não é verdade.
É um romance épico... Até olharmos mais de perto e analisarmos criticamente. |
E assim como a representatividade de casais LGBTQ+ em séries foi o que fez com que eu me aceitasse como bissexual, o impacto causado por uma obra ficcional que romantize possessão, perseguição, manipulação e violência, seja ela qual for, faz com que milhares de mulheres pelo mundo achem que é normal, que o amor é assim. Só que a função da mulher não é fazer com que um homem “mude” às custas da própria felicidade e saúde mental. Porque, sejamos sinceros, na vida real, eles não irão mudar. A influência da Cultura Pop no que é aceitável em nossas vidas é maior do que costumamos pensar e quanto mais histórias vendem abuso disfarçado de amor, mais distantes e estamos de um futuro melhor.
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Sobre a autoria: Isabela Duarte, a maior Gleek e Faberry shipper que você respeita. Estou no primeiro ano do Ensino Médio e faço dezesseis anos agora em Maio. Meu grande e verdadeiro amor é a escrita e, depois dela, vêm meus passatempos favoritos, que são assistir séries e ouvir música. Militante de causas sociais e a problematizadora do rolê. Gorda e felizmente bi. Tenho os melhores amigos do mundo inteiro e se discordar é porque não os conhece.
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