Anitta Ben Hur Bernard

Na crise, a inteligência criativa de Anitta se chama malandragem

20.12.17Colaboradores CC


O meme é hoje uma linguagem quase tão universal quanto a música e um dos memes criados esse ano, no meio do completo caos que se encontra o país, diz “A única coisa que tem dado certo no Brasil é a Anitta”. E é mesmo!

Quando se constata uma crise, a postura mais inteligente é ser pragmático. Enquanto a gente vive uma crise de identidade política, onde todos os nossos heróis estão mortos e estamos todos correndo como baratas tontas, Anitta foi estudar. Com um know how absurdo, a funkeira decifrou como o brasileiro consome música e nos usou como base de apoio (incondicional) e começou a se lançar ao mercado internacional. Anitta disse em entrevistas recentes que não há como comparar o mercado fonográfico brasileiro ao já manjado (ou, por que não dizer, viciado?) estadunidense. Nós somos muito complexos, aparentemente. E é nessa complexidade que Anitta se fez e se faz, mostrando uma versatilidade que só grandes e pouquíssimos nomes da música mundial consegue sustentar.

Assim surgiu o projeto “Check Mate”, onde ela lançou quatro músicas e seus respectivos vídeos, um por mês. Anitta abriu mão de lançar um álbum coeso e fechado, que demandaria muito mais trabalho logístico e artístico, para trabalhar minimamente música por música, separadamente, visando públicos e objetivos completamente diferentes e disponibilizando material novo. Uma estratégia de guerra, literalmente, uma guerra de números, engajamento e streaming, que nunca se viu sendo realizada no cenário musical brasileiro. E nunca vimos isso não só porque nunca tivemos uma artista pop – no sentido literal da palavra – tão grande, mas porque o Brasil de 2017 é um país estrangeiro até mesmo para os brasileiros. Mas Anitta decodificou esse ambiente, ela tinha um visto no passaporte para esse novo Brasil.

Ela começou o projeto pelo fim, dando pistas e deixando vazar, deliberadamente, informações sobre a última música do projeto, “Vai Malandra”. E enquanto o público já cativo da cantora roía as unhas esperando por essa música, Anitta seguiu desbravando os públicos e metas que, até então, eram inéditos para ela.

Antes mesmo do projeto começar, Anitta lançou “Paradinha”, em espanhol, se lançando solo ao mercado latino, que se encontra em altíssima expansão no mundo, muito propiciado também pela crise do pop feminino estadunidense desde 2013. O 'Check Mate' se inicia com “Will I See You”, quando Anitta esfrega na cara de uma pretensa elite boboca brasileira que ela sabe cantar e que tem capacidade de entreter um público mais “adulto”, deslizando com muita facilidade na bossa nova. Depois veio “Is That For me”, uma música eletrônica para consumo rápido, atingindo um público internacional que consome música nova como quem respira. No mês seguinte veio “Downtown”, em espanhol, parceria com J. Balvin, que hoje é o cantor latino mais influente no mundo. Até aqui, Anitta foi do papagaio ao vovô e vovó, do norte ao sul, e conseguiu nada mais, nada menos, que 10 milhões de novos ouvintes na plataforma de streaming mais popular do planeta, o Spotify.



No dia 18 de dezembro chegou ao fim o projeto em que Anitta deu um cheque mate e encerrou da melhor maneira a incursão mais bem sucedida de uma brasileira no mundo da música. Segundo a Billboard, uma das mais importantes publicações sobre música do mundo, a carioca é uma das 50 artistas mais influentes nas redes sociais no planeta, sendo ela a única pessoa brasileira na lista. Conquistou também o top 100 do Spotify como uma das artistas mais ouvidas no mundo, sendo também a única brasileira/o.

Mas ainda não falamos de “Vai Malandra”...

Com “Vai Malandra”, Anitta volta ao morro, ao funk e ao Rio para agradecer e para ostentar, com muita pompa, que aquela menina que todos diziam que não ia passar de uma música, hoje é o maior nome brasileiro na boca do mundo. E se não havia ficado claro que Anitta estudou bastante para realizar o projeto ‘Check Mate’, com essa última música, tudo se esclarece. Embora o talento e a versatilidade inegáveis de Anitta a lancem como um dos nomes mais promissores do novo pop glocal (global e local), embora fique evidente pra gringo ver que ela pode entregar um material que se compara, em nível de qualidade e possibilidade de engajamento, com os artistas internacionais, Anitta ainda assim não seria novidade. A novidade vem do Produto Interno Bruto e o nosso PIB mais glocal que existe é o funk.

Sim, o funk! E por que?



Porque o funk é um dos primeiros gêneros musicais nacionais que nasce a partir do sample, a partir da apropriação, da mixagem e, principalmente, da estética eletrônica e desterritorializada das mídias. Ou seja, o funk tem identidade, mas tem potencialidade de fazer frente aos ritmos colonizadores dos EUA e do Reino Unido. Não é a toa que desde meados dos anos 2000, mais precisamente em 2005 com a britânica M.I.A., o funk carioca despontou como um dos ritmos mais promissores, como novidade e alternativa ao cansaço já evidente, naquela época, do pop do norte. O funk tem em sua gênese a força da gambiarra brasileira, a flexibilidade de adentrar ou invadir os cenários musicais globais.


É isso que alguém inteligente, no meio de uma crise, faz: se compreende, compreende seu ambiente, sua possibilidade e potencialidade e, por fim, explora. O meme que brinca com a sagacidade de Anitta em meio a uma crise política, econômica, institucional... pode fazer rir, mas é sério. E que não se engane, é Anitta quem se administra, quem se empresaria, quem se dirige artisticamente e trabalha o marketing como alguém que tem anos de experiência.

O vídeo de “Vai Malandra”, por sua vez, gravado no Morro do Vidigal, com pessoas reais da comunidade, sendo inclusive algumas delas influencers digitais, não mascara ou romantiza a favela, mas faz o oposto. Anitta explora desde as suas celulites na bunda, passando pelos biquínis de fita isolante, até as fiações tortas das ruas estreitas da favela. Um marqueteiro ou um ministro da Economia do vampiro Michel Temer faria o oposto, esconderia, maquiaria. Claro, a ideia aqui é mostrar o quanto nós podemos ser iguais aos do norte. Anitta tem uma ideia diferente, no meio dessa muvuca de chão tremulante: o melhor é mostrar o quanto somos diferentes, não só nós em relação a eles lá no norte, mas também entre nós mesmos. Anitta entendeu a complexidade do brasileiro contemporâneo por meio do consumo e entendeu como explorar isso. Agora colhe os frutos. Anitta decretou K.O. ao viralatismo brasileiro, descendo, rebolando e quicando. Enquanto estamos todos buscando lá fora (como sempre foi há mais de 500 anos) os remédios de nossas dores de cabeça, Anitta extraiu da esquina da sua casa uma pomadinha milagrosa que funciona: a malandragem.




Sobre o autor

Ben-Hur Bernard é jornalista, doutorando em Estudos da Mídia e um entusiasta da cultura pop. Adora fazer problematizações chiques sobre pop, cultura e novas tecnologias (isso é muito Black Mirror). Administrador do grupo Smart Pop no Facebook  e escreve esporadicamente no blog Questões Milimétricas 

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