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Escrever começa com perdão: Por que um dos conselhos de escrita mais comuns está errado
15.10.17ConversaCult
Blogs de conselhos de escrita falam isso. Seus escritores favoritos falam isso. Cursos de MFA (Master of Fine Arts) falam isso.
É um dos conselhos de escrita mais comuns e na realidade não é bem assim. Eu entendo: a ideia é se manter no ritmo não importa o quê, não ficar desanimado, não desacelerar mesmo quando a musa da inspiração não está cooperando e a vida fora da escrita está te puxando pela manga. Nessa versão enxugada e simplificada da natureza verdadeiramente complexa da criatividade, perder um dia é equivalente a desistir, é a droga de entrada para se juntar às massas de não-escritores preguiçosos.
Besteira.
Aqui tá o que faz as pessoas pararem de escrever mais do que qualquer outra coisa: vergonha. Aquela sensação persistente e inquieta de “deveria ser”, “deveria ter sido” e “ah, mas se eu tivesse…”. A vergonha vive no corpo, ela se agarra nos nossos músculos quando nos sentamos em frente ao teclado, ela se apropria de um espaço mental valioso com conversas inúteis e repetitivas. Vergonha, e a paralisia resultante, são o que acontece quando o mundo inteiro enfia na sua cabeça que você deveria estar escrevendo todo dia e você não está.
Cada escritor tem seu ritmo. Parece simples, mas claramente isso deve ser dito: não há um jeito único. Encontrar nosso caminho através da perspectiva complexa de criação, processos e diferentes versões de sucesso é uma jornada profundamente pessoal e muitas vezes dolorosa. É um exemplo bem realista de construir a estrada enquanto se caminha. Mentores e companheiros de viagem podem te apontar novas possibilidades, desafiar você e expandir a sua imaginação, mas ninguém pode te dizer como administrar o seu processo de escrita. Eu tenho escrito consistentemente desde 2009 e eu ainda estou descobrindo o meu jeito. E provavelmente estarei pelo resto da minha vida. É uma aventura crescente, orgânica, frustrante, inspiradora e bagunçada, e é toda minha.
Dois anos atrás, enquanto eu terminava Half-Resurrection Blues e Shadowshaper, eu também estava na faculdade, editando Long Hidden, trabalhando em período integral numa ambulância de emergências, e dando aulas para um grupo de garotas adolescentes. E essas são as coisas que dá pra colocar num papel. Eu também estava sendo um namorado, um filho, um amigo, um bom irmão, um mentor, e um ser humano vivo, que respira, que ama, que precisa se recuperar. Nada que possa simplesmente ser abandonado porque eu peguei a responsabilidade de escrever.
Você pode ter certeza absoluta de que eu não estava escrevendo todos os dias.
Eu consegui fazer tudo porque eu encontrei o meu ritmo e confiei nele. Quando eu comecei a escrever Half-Ressurrection Blues e eu não estava fazendo tantas outras coisas, eu escrevia na maca na traseira da ambulância, literalmente entre pacientes de ataque cardíaco e vítimas de tiroteio. Minha vida mudou e meu ritmo mudou com ela. Quando eu estava na ambulância em período integral, eu nem considerei escrever qualquer coisa que não se encaixasse em 140 caracteres espontâneos. Escrita estava simplesmente fora de alcance.
Nós somos escritores porque escrevemos.
Nos meus dias de folga, eu acordava tão cedo como nos dias em que eu precisava estar em algum lugar em determinado horário. Eu ia sentar minha bunda na cadeira lá pelas 9h ou 10h e tentar tirar de mim as minhas primeiras 1000 palavras até o almoço. Em alguns dias, eu não conseguia. Em outros, eu conseguia 2000 palavras por volta de 11 da manhã.
E em outros dias, eu não escrevia uma única palavra. Sim, é verdade. Por quê? Algumas vezes, era porque eu estava ocupado estando vivo. Em algumas outras, era porque a história em que eu estava trabalhando simplesmente não estava pronta para ser escrita ainda. Como a escritora (e também minha esposa) Nastassian Brandon diz: “se você está escrevendo só por escrever e não está escutando os momentos em que a sua mente e o seu corpo pedem para que você faça uma pausa, dê uma volta e então volte para a criação com novos olhos, você está fazendo a si mesmo um desserviço. E é exatamente isso. Eu já passei muitas horas ansiosas e inquietas na frente de uma tela em branco, não fazendo nada além de ficar bravo comigo mesmo. Finalmente eu descobri que ficar pensando é parte da escrita também, e isso não rende quando seu cérebro e corpo estão comprimidos. Então eu dou umas voltas, e nessas voltas, a história flui, as ideias param de se encolher nos cantos da minha mente, empurradas para o lado pela vergonha de não escrever.
Amarrada a essa ordem de escrever todos os dias está a questão de quem é e quem não é um escritor. As mesmas instituições e os mesmos gurus de escrita que demandam que você se atenha a um cronograma que não é seu vão insistir em delimitar o que faz um verdadeiro escritor. Na formatura do meu MFA, o palestrante nos informou que agora todos nós éramos escritores e eu apenas balancei a minha cabeça. Nós já éramos escritores, todos nós, bem antes de colocarmos os pés naqueles corredores sagrados. Nós somos escritores porque escrevemos. Nenhum MFA, nenhum contrato de publicação, nenhum nome na capa de livro muda isso.
Então, se escrever todos os dias é o que mantém o seu ritmo, continue. Se não, então por favor não se prenda nos discursos de “deveria ser” e “se eu só…”. Particularmente para os escritores que não são homens cis brancos héteros que não tem deficiência, a vergonha e a sensação de não pertencimento, de “não mereço sentar nessa mesa” ou “não mereço ter minha voz ouvida” podem permear o processo. Nada vai dificultar mais um escritor do que isso. Anaïs Nin chamou a vergonha de a mentira que alguém te contou sobre você mesmo. Não deixe uma mentira atrapalhar o seu ritmo.
Nós lemos um monte sobre processos excêntricos de diferentes escritores — mas e aqueles momentos cruciais antes de colocarmos a caneta no papel? Pra mim, a escrita sempre começa com auto-perdão. Eu não sento e escrevo um monte de coisas apressadamente numa página em branco. Eu faço café. Eu coloco uma música que eu gosto. Eu bebo o café, eu escuto a música. Eu não escrevo. Começar com perdão revoluciona o processo de escrita, faz com que ele volte a ser uma jornada de criatividade em vez de um exercício de auto-flagelação. Eu me perdoo por não sentar para escrever mais cedo, por tirar um dia de folga ontem, por viver a minha vida. Aquela vergonha? Eu liberto ela. Meu corpo relaxa, uma nova leveza se apodera dele quando esse peso sai. Há agora espaço para a história, para a ideia, para a vida.
Eu coloco as minhas mãos no teclado e começo.
Essa é uma tradução do texto do autor Daniel José Older, publicado originalmente em inglês no SevenScribes. Tradução de Eduarda Trento e Dana Martins.
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