abuso sexual Andressa Faria

A quem serve a vítima de abuso que só sofre?

10.9.17Colaboradores CC


Originalmente publicado no Medium
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Banner da campanha liderada por Clara Averbuck.

Todo mundo diz que Agosto é um mês difícil, mas o de 2017 foi particularmente sofrido para as mulheres brasileiras. Vou falar nesse texto de duas, especificamente, que compartilham pelo menos 4 semelhanças: ambas se chamam Clara, são gaúchas, escritoras de notoriedade e no oitavo mês desse ano decidiram expor na internet os abusos aos quais foram submetidas e também os seus abusadores. Foram eles, respectivamente, o ex-marido com o qual a primeira Clara se manteve casada por cinco anos e o outro um ex-motorista de Uber, designado a levar a segunda até a sua casa depois de uma festa. Como alguns de vocês já devem suspeitar estou falando da Clara Corleone e da Clara Averbuck!

No dia 16 a primeira das Claras (a Corleone) fez esse relato na sua página pessoal no Facebook, contando sobre a relação abusiva que viveu com o ex-companheiro, um dos integrantes da banda Apanhador Só, que vem fazendo grande sucesso no Sul do país. O desabafo aconteceu devido ao lançamento da canção “Linda, Louca e Livre”, que entoa um slogan feminista reconhecido. Nas suas palavras, “Não há nada de feminista ou de desconstruído nesse músico e, mesmo que não seja ele o autor da canção, acho uma piada de mal gosto imensa que o Felipe fique no palco tocando ela durante os shows”.

Na última semana foi a vez da Clara Averbuck colocar a boca no trombone, relatando o estupro que sofreu dentro de um Uber, enquanto voltava para casa. O seu relato se espalhou pelas redes sociais e alcançou a grande mídia, o que fez com que ela iniciasse uma campanha incentivando outras mulheres a denunciarem abusos sofridos em meios de transporte particular, conectados através da #MeuMotoristaAbusador!

O que essas Claras receberam em troca de suas colocações? Apoio? Sim, de certo modo, como elas fizeram questão de contar e pelo qual se mostram muito gratas, mas obviamente o que mais rolou foram críticas cruéis e questionamentos aos seus posicionamentos. Não faltaram comentários e textões falando que elas queriam mesmo era aparecer, que era tudo mentira, que queriam prejudicar os pobres homens e que “vítima de verdade, que foi abusada mesmo não se comporta dessa forma”.

A “forma” em questão, que soa tão condenável e implausível é a combativa, que expõe o abusador e que não se encolhe mais diante da dor de ser violentada. São mulheres que claramente sofreram muito com o que viveram, mas que se acolheram, se cuidaram e se trataram o bastante para conseguir transformar essas experiências terríveis em combustível para que buscassem uma sociedade mais igualitária para todas nós. Eu não posso dizer que essa foi a intenção inicial de seus desabafos, mas acompanho a trajetória das duas de longe e vejo o quanto são empoderadas e o quanto se esforçam (e se orgulham) para empoderar outras garotas.

É muito incômodo e perturbador para mim perceber que a única vítima de abuso que é respeitada na nossa sociedade é aquela que só sofre, que não consegue ir adiante. Parece que as mulheres não podem reagir de maneira distinta às violências sofridas, e que também não podem continuar caminhando, tentando sobreviver, resistir, superar! Não me espanta que esse tipo de comentário normalmente seja proferido por homens, que obviamente não tem a menor noção do que é lidar constantemente com a violência sexual, a qual nós somos submetidas TODOS OS DIAS. Chega uma hora que a casca engrossa, meus queridos, e a gente têm duas opções: ou entra num estado de absoluta apatia, fingindo que não é com a gente e que não nos incomoda mais ou parte para a luta, para a guerra, para o campo de batalha!

Fotografias

Nem a Clara Averbuck nem a Clara Corleone foram abusadas por homens uma só vez. A real é que a esmagadora maioria das mulheres não é (ou não foi) abusada “apenas” uma vez ao longo das suas vidas, infelizmente. Não dá para reagir igual a primeira e a quinquagésima violência sofrida, mesmo que ambas machuquem, marquem e muitas vezes nos matem um pouco por dentro de maneiras parecidas. Nós também vamos evoluindo, vamos nos amando mais e vamos aos poucos percebendo que precisamos seguir em frente, porque a vida tem que continuar (e esperamos que continue para melhor)! É muito provável que a última agressão sentida não tenha sido a última de fato, mas a gente se arma e tenta combater todos os males que esse mundo super misógino nos impõem, por nós mesmas e pelas outras!

Quando eu expus publicamente a década de abuso que sofri do meu irmão tive muito colo e muito abraço, sim, e felizmente não faltaram ouvidos dispostos a me escutar e gente afim de me amparar, mas também sobraram perguntas escrotas, como “Nossa, como você consegue falar disso desse jeito?”, ou “Por que você não falou antes?”, e também não faltaram comentários como “Ah, agora não adianta nada você falar, porque já passou, o estrago já está feito, já era…”. Isso veio de gente desconhecida, mas veio também de dentro da minha própria família e foram palavras proferidas por gente que eu considerava amiga. Então, sinceramente, para mim é foda ser descredenciada, e ver outras mulheres sendo desacreditadas por resolverem denunciar e por decidirem que a tragédia a qual foram expostas não vai mais destruir as suas existências, até porque a vida de muitas de nós acaba depois de um estupro, de um abuso e a sensação que fica é de que queriam que o mesmo acontecesse conosco!


A quem serve a vítima de abuso que só sofre, que se se cala, que silencia? Não é a ela mesma, eu posso garantir. Embora a reclusão possa ser parte do processo, se a gente não verbaliza a violência sofrida ela vai nos comendo e nos transtornando por dentro. É preciso falar, nem que seja com a melhor amiga, nem que seja num fórum de internet, nem que seja na terapia (aliás, façam)! Não é também às outras vítimas, que continuam sendo violentadas e abusadas achando que estão sozinhas ou que isso é “normal”, porque não se abre a boca para falar sobre isso e aquelas que ousam transgredir essa regra social são achincalhadas. Eu te digo a quem serve a vítima de abuso que fica presa na própria dor e só chora encolhida na cama, envergonhada pelo que passou e cheia de vontade de morrer: aos abusadores. Aos violentadores. Aos estupradores e a toda a nossa sociedade que diz que os despreza e que os teme, mas que os alimenta constantemente julgando mulheres por fazerem coisas que homens fazem (por exemplo, gostar de sexo e verbalizar isso) e duvidando de mulheres por elas não estarem sofrendo “o bastante” pelo que lhes vitimou!

Que tipo de indivíduos sádicos vocês são, que só conseguem acreditar que uma mulher foi abusada se ela estiver (e continuar estando, por muito, MUITO tempo) completamente destruída, tanto por dentro quanto por fora? Que ideia distorcida de empatia é essa, que só se dispõe a apoiar a vítima de violência se ela consegue se comportar como você gostaria que ela se comportasse, ou como imagina que se comportaria se estivesse na mesma situação que ela está? Será que se fosse um homem “de família” se dizendo estuprado vocês duvidariam do relato por ele não querer fazer um boletim de ocorrência? Será que diriam para um cara que ele na verdade deve ter gostado de um suposto abuso sexual, porque posta foto sem camisa demais, ou conta dos seus casinhos nas redes sociais? Será que diriam que a denúncia só veio para “prejudicar a vida” do agressor e que o denunciante “só quer se promover às custas do sucesso alheio” se a vítima em questão fosse do sexo masculino?

Essas perguntas foram todas retóricas, obviamente. Eu já sei a resposta de cada uma delas, mas tenho lá minhas dúvidas se vocês que assumem essas posturas tão investigativas e questionadoras teriam coragem de admitir que na verdade só nos odeiam mesmo porque somos mulheres e porque queremos continuar vivendo, mesmo que façam de tudo para que deixemos de existir, mesmo que desejem ardentemente que jamais sejamos livres! Que surjam mais vítimas dispostas a denunciar os abusos sofridos, da maneira que lhes for possível, que lhes machucar menos e que lhes acalmar mais, para que um dia possamos nunca mais ser vítimas! É para isso que seguimos falando, perturbando e fazendo barulho, e é melhor se acostumar porque apontar o dedo e julgar não é o que vai nos fazer parar! Não mais! Nunca mais!

"Percebemos a importância de nossas voz quando somos silenciadas." - Malala Yousafzai

Sobre a autora: Sou uma escritora feminista, que também é tricolor carioca e body ativista!
Em última instância sou tudo aquilo que se lê! Você pode me encontrar no facebook e no medium.

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