Aline Mazzarella CCdiário

A minha identidade como surda que escuta

27.9.17Colaboradores CC



Quando pensei em escrever um texto sobre minha surdez, eu pensei em dois temas muito mais leves e já tinha até começado a escrever sobre eles. Porém recentes acontecimentos fizeram mudar o conteúdo do primeiro texto, e o fato de 26 de setembro ser o Dia do Surdo me fez querer espalhar alguma coisa sobre essa deficiência invisível.

Apesar de todos os problemas que eu tive por minha surdez desde que entrei na universidade, nenhum deles foi em âmbito social. Meus colegas aceitavam com uma naturalidade tão grande que foi grande parte da força para que eu mesma aceitasse minha surdez. Nunca tive problemas específicos com professores nem nada. Até recentemente, quando uma professora disse que eu NÃO SOU SURDA.

Vamos fazer uma conceituação básica: quando você pensa na pessoa surda, você está pensando diretamente nas pessoas que vivem nas chamadas “comunidades surdas”, que se comunicam exclusivamente por meio da Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. Porém existem outros, que merecem tanta assistência quanto. São os surdos oralizados, usuários da Língua Portuguesa.

Eu tenho surdez neurossensorial bilateral e progressiva. Progressiva porque eu fui perdendo ao longo do tempo, e vou continuar perdendo, provavelmente até chegar no nível profundo em ambos os ouvidos. Atualmente eu tenho perda de moderada a severa em um dos ouvidos e severa a profunda no outro. E eu vivo bem com isso atualmente, mas demorei muito para me aceitar. Demorei para parar e “é, eu sou surda. É pior esconder que aceitar”. Foi um processo de anos. Atualmente eu uso aparelhos de amplificação sonora individual cedidos pelo SUS e pelo CENOM (falo sobre isso em outro post!!!!) e não escuto perfeitamente, mas muito mais do que escutava antes e sou muito feliz com isso. 

Como dá para perceber, a identidade surda é importante para mim. E aí quando uma pessoa chegou para mim e disse "você não é surda, querida”, foi um baque, foi um choque para mim. COMO ASSIM, eu não sou surda?????

Como é que é, querida??
Tudo começou porque a professora quis separar “pessoas com deficiência auditiva” de “pessoas surdas” e eu a corrigi. E aí ela começou a falar em LIBRAS comigo, perguntando se eu estava entendendo ou se eu tinha nome surdo (nome em língua de sinais) e quando a resposta para ambas perguntas foi não, ela disse que eu não sou surda porque não faço parte da comunidade surda !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Em primeiro lugar, a chamada comunidade surda nasceu de exclusão. De uma época na qual deficientes auditivos, visuais, físicos, intelectuais, só poderiam conviver entre si pois o mundo não queria recebe-los. Eu entendo a necessidade disso, e do surgimento da língua de sinais e a continuidade de seu uso, mas cada pessoa é uma pessoa. 

Um professor é preparado para lidar com pessoas diferentes. E deveria ser preparado para lidar com deficiências diferentes entre si e DENTRO DE SI. Um deficiente visual não responde como outro. Da mesma forma que um garoto autista não vai responder como outro garoto autista. Existe o espectro autista. Você vai dizer que um é mais ou menos autista porque existem níveis diferentes de autismo?

Então,  por que eu sou menos surda porque falo? Por que escolhi a tecnologia?

Na real, eu cheguei pra ela e aconteceu o seguinte diálogo:

- Você está dizendo que eu sou ouvinte demais para o mundo surdo?
- Sim.
- Mas o mundo ouvinte diz que eu sou surda demais para ele, e ai? O que eu sou?
- VOCÊ É O LIMBO.

PORRAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAA


A mulher não quis ouvir meus pontos. ELA ASSUME QUE POR ESCREVER MIL ARTIGOS SABE MAIS SOBRE MIM QUE EU MESMA. Eu disse a ela que na minha família existem várias pessoas que falam e são surdas, usuárias ou não de tecnologias assistivas. Minha irmã fez um implante coclear, minha mãe é surda de um ouvido e escuta pouquíssimo do outro, minha tia é totalmente surda, essas duas últimas não fazem uso de tecnologia. Elas falam. Elas não são surdas?

É esse tipo de pessoa que defende essas divisões que tornam meu mundo mais difícil. O banco tem um telefone especifico que usuários de LIBRAS tem em casa. Mas eles não disponibilizam chat. Ou eu uso telefone (COMO? Minha surdez não permite isso nem com aparelhos auditivos) ou eu vou até a agência pessoalmente. Por quê? Porque se você é surdo, você tem que falar LIBRAS, que se dane as diferenças. Porque o filme não precisa ser legendado, vai no outro lado do Rio de Janeiro que tem acessibilidade na Gávea. E a acessibilidade, ao chegar lá, é um tradutor de LIBRAS.

A professora mudou o assunto como se nada tivesse acontecido e tocou na ferida: implante coclear.

Não sei se vocês sabem, mas o implante coclear não tem uma boa resposta quando você o faz na idade adulta sem nunca ter ouvido na vida. E também não sei se vocês sabem, mas quando dois pais surdos sinalizados, membros da comunidade surda têm um filho que nasce surdo no hospital e o neném é candidato ao implante coclear, esses pais costumam negar o implante aos filhos. NEGAR. Negar porque querem que a criança cresça surda, na comunidade surda, sinalizando, nunca usando uma tecnologia para ouvir.

Na moral... Dá pra entender o ponto de vista deles. Dá, sim. Porém veja bem... Nada impede uma criança de aprender LIBRAS enquanto fala a Língua Portuguesa. Crianças aprendem línguas com facilidade!!! Agora veja esses dois pontos envolvendo uma criança surda e me diga qual deles é mais sensato, mais fácil:

1. A criança cresce aprendendo LIBRAS e ouvindo do melhor jeito possível através do implante coclear. Ela chega numa idade de 16 anos e resolve que quer viver na comunidade surda, na dita cultura surda, apenas sinalizando e abrindo mão do mundo ouvinte. Ela pode remover a parte externa do implante coclear e não ouvir mais. Ou, se quiser ser mais radical, pode fazer a cirurgia de remoção da parte interna. Pronto, resolvido.

2. A criança cresce aprendendo LIBRAS, na dita comunidade surda, cultura surda, sinalizando sempre, etc, etc. Chega numa idade de 16 anos e quer ouvir. Porque quer, porque o mundo é grande e maior que uma comunidade fechada. E ela resolve fazer o implante coclear, que talvez nem possa fazer e, caso possa, não teria uma resposta tão satisfatória, pois adulto pré-linguais não são bons candidatos ao implante. E a escolha da criança foi tirada de si.

Pais que defendem a segunda opção defendem que é essa a escolha deles. Mas e a escolha dos filhos?

Eu fiquei só o meme do pingu putaço nessa aula. Eu saí de lá chorando de raiva e tristeza porque ela feriu a minha identidade. Naquele mesmo dia, a bateria do meu aparelho auditivo acabou no ônibus e eu não ouvia um ruído mais. O que a tecnologia faz pela audição é lindo, lindo demais. Num futuro próximo eu escrevo detalhando o que ela fez por mim. Mas eu nunca deixarei de ser surda, da mesma forma que um deficiente físico não deixa de ser deficiente físico por usar próteses para andar. Ver uma professora falar assim comigo mexeu mais do que eu poderia dizer.

Mas eu sigo adiante. Minha amiga fez um paralelo da situação com a dela mesma: “clara demais pra ser negra, escura demais pra ser branca”. E na real, foda-se o que essas pessoas falam. Eu sou surda bilateral de severa a profunda e meu bem mais importante no mundo são meus aparelhos auditivos. E um dia eu farei o implante coclear.

Eu não deixarei de ser surda por amar a língua portuguesa e por amar ouvir o som da roda do carro no asfalto.




Sobre a autora

Aline Mazzarella é estudante de Física, e professora e cientista quando a UERJ deixa. É deficiente auditiva mas contorna como pode os obstáculos que a surdez coloca no caminho. Amante de leitura desde criancinha, tendo literaturas infanto-juvenil e fantástica como favoritas, mas lê qualquer assunto que estiver pela frente (porém sem arriscar muito na escrita). Não vê música como algo indispensável, mas, além da leitura, não vive sem suas séries e filmes repetidos.

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11 comentários

  1. oi Aline!
    Que belo texto, dá para sentir a sua frustração!
    Lendo a parte em que você fala do banco e da dificuldade em telefonar, não posso deixar de falar para você de um novo aplicativo que acabou de chegar no Brasil. Se chama Pedius, permite aos surdos usarem o telefone e é gratis. Pode saber mais aqui http://www.pedius.org/br/

    Baixe e confira como pode ajudar na sua vida! ;)

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  2. Eu estou indignada por uma professora (PROFESSORA, PORRA!) ter te tratado dessa maneira!
    Força!!!
    Sinta minha empatia daqui! Beijos para você querida.


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    1. Menina... professora de educação inclusiva! ahahahaha
      obrigada pelo carinho <3

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  3. esse texto <3 por favor, escreva mais. recentemente eu assisti um vídeo de uma mulher (o nome é Elsa Sjunneson-Henry) que também não é completamente surda (e também nem completamente cega) falando sobre isso e o que ela começa dizendo que justamente é uma escala.

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    1. vou procurar esse vídeo! desculpa minha demora pra responder, só vi os comentários agora hahaha <3

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  4. Nossa esse texto, que necessário. Minha mãe tb é surda, mas tb não completamente, e como é difícil. Ela fica num limbo, nem lá nem cá, e as pessoas não entendem, acaba que ela tem que se virar, não há disposição das pessoas para inclui-lá, ela é zoada por apelidos de pessoa próximas, como se a surdez fosse culpa dela, é muito difícil.

    Desejo que você sinta minha empatia dai, e que você continue abrindo caminhos nem que seja a socos, e que você possa ser aquela que vai mostrar paras as pessoas como elas estão erradas.

    Belíssimo texto. Escreva mais que tá pouco ainda XD

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    1. oi! desculpa a demora, só vi os comentários agora! pretendo escrever mais sim!
      sua mãe usa algum aparelho?
      obrigada pelo carinho!!!!1 <3

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    2. Oi, então, ela não usa não. Um vez viu a possibilidade de fazer cirurgia, mas acabou deixando pra lá.

      Ela tá bem com ela, acho que a busca para a cirurgia era mais pelos outros, a família é muito insensível e ignorante sobre surdez,mas ela leva uma vida super normal sabe.

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