Há algumas coisas que toda pessoa gorda já passou, coisas que ainda são como um calcanhar de Aquiles, como comprar roupas e comer em público. Se a gente tá comendo uma besteira, um chocolate ou aquele podrão saboroso que todo mundo gosta as vozes na nossa cabeça dizem “é por isso que tá desse tamanho”, “vai acabar explodindo comendo assim”, “depois quer emagrecer se come desse jeito”. Se estamos comendo uma salada super incrementada, uma fruta ou qualquer coisa dita como saudável, essas vozes também se manifestam, mas agora elas perguntam “você acha que tá enganando quem?”, “o que adianta comer isso aqui e se entupir de besteira escondido?”. Essas vozes não são só da nossa cabeça, são vozes de pessoas que se acharam no direito de falar o que pensam sem ao menos conhecer aqueles de quem elas falam.
Mas não são só com as pessoas gordas que a comida se tornou um problema. Assim como a nudez, todo mundo tem alguma história com a comida, às vezes história legais sobre domingos na casa da avó, às vezes histórias dolorosas sobre a tortura que eram as refeições em família, às vezes um misto de prazer e dor.
Eu quero falar da minha realidade, como mulher e como uma mulher que está “acima do peso”: qual é o papel da comida na minha vida? Eu como para alimentar meu corpo, e também como por prazer, mas o comer em público ainda é carregado daquelas vozes que me acompanham a tanto tempo que há momentos que nem as escuto. Mas será assim para todos?
Mulheres aprenderam a definirem umas as outras por seu peso, fulana emagreceu ou engordou é a pauta, ou vocês não estão acompanhando as fofocas sobre a cantora Rihanna e muitas outras antes dela? Nós somos pesadas e nos pesamos constantemente, mas é algo tão arraigado que não percebemos, não questionamos se isso é saudável, se machuca o outro, ou se a nossa dor poderia ser evitada. Quando vemos já estamos com a fita métrica na mão medindo busto, coxas, pernas e barrigas. É um hábito. Somos as felizes donas das balanças, nossas e dos outros, e das dietas. Dietas muitas vezes malucas.
Tenho uma tia que toma remédio sem prescrição médica, vai à academia às vezes duas vezes ao dia, e se enfia nas dietas mais loucas, sempre com um sorriso no rosto e a alegria de quem encontrou aquilo que a deixa realizada. Isso me preocupa, mas minha fala é ignorada diante a realização do desejo alcançado. E ela não está sozinha, desde cedo somos iniciadas no mundo das balanças e das dietas, não importa se somos magras ou gordas. Façam o teste, observem as conversas das mulheres em salão de beleza, em filas de banco, observem as matérias das revistas femininas, observem o que tias e mães falam para as meninas que elas cuidam. Tá ai para quem quiser ver.
Enquanto perambulava pela internet achei esse post no blog Lugar de Mulher, e em certo momento do texto a autora dizia:
A comida é para as mulheres hoje, o que foi a sexualidade em tempos passados. Ou, por outra, o dilema da comida para as mulheres hoje, é o que foi o dilema da sexualidade para as mulheres em tempos passados. Se antes o controle sobre o corpo feminino exercido pelas normas e regras da sociedade patriarcal dava-se em relação à sexualidade da mulher, agora o mesmo controle sobre o corpo feminino se dá através da comida. Para elas, a antiga equação “dar ou não dar para o namorado”, equivale à equação “comer ou não comer” dos dias atuais. As mesmas fobias relativas às dificuldades de gozar, às dores da penetração, à frigidez, aos medos de engravidar, à vergonha de deixar-se tocar por um parceiro ou de ficarem nuas na frente dos outros são as mesmas fobias que tomam conta da vida das mulheres de forma desesperadora nos dias de hoje. Só que agora a antiga ansiedade se revela através de um verdadeiro terror das mulheres em relação ao seu peso e suas medidas.
Eu nunca me esqueci dessas palavras, pensando bem, esse parágrafo por si só é tudo o que eu estou falando aqui, como nós mulheres fomos colocadas ou nos colocamos - não sei bem como isso se deu - sob o julgo da comida.
Eu resolvi escrever esse post porque umas amigas estavam comentando o quanto eu não aguento comer muitas quantidades de comida, quem me conhece sabe disso, uma porção e eu já estou empanzinada, mas como eu sou uma pessoa gorda, é obvio que isso é mentira - ou pelo menos era isso que o olhar de mulher no metrô me dizia. Então eu quis falar sobre essa situação que nos entristece e por vezes paralisa, mas ao começar a escrever lembrei do parágrafo do Lugar de Mulher percebi que já fui a mulher do olhar julgador do metrô, e que ela também por vezes já foi julgada, provavelmente ela própria se julga. Somos equipadas com essa fita métrica tão real que parece visível para todos que estiverem olhando.
Mas ser comum não significa que não pode ser mudado, muito pelo contrário: as mudanças só ocorrem quando a gente começa a questionar o status quo, quando o padrão deixa de ser uma resposta suficiente e passamos a perguntar o porquê daquele padrão e se ele é mesmo necessário. Não precisamos carregar fitas métricas, nem balança e muito menos viver de dieta.
Ainda no texto da Lélia, ela pergunta o que essas mulheres comem, e responde que comemos a fome, fome dos nossos desejos, fome de nós mesmas. E foi com esse fechamento que passei a refletir minha própria fome. Longe de mim dizer que estou saciada, mas agora sei ou ao menos estou sabendo cada dia um pouco mais sobre aquilo que como e quero comer. Larguei o kit julgador, e se percebo que mais uma vez eles estão em minhas mãos, mais uma vez os largo. Há de perguntamos para nós mesmos sobre qual é a nossa fome, há de ensinarmos as mulheres que suas fomes não estão sob julgo de ninguém, talvez nem delas mesma.
O problema não é a comida, nós que estendemos o problema para ela. Às vezes até parece que sim, as comidas são as vilãs, como a situação do primeiro parágrafo deixa a entender, mas eram mesmo as comidas as vilãs ali? Uma faceta incrível do ser humano é a capacidade de aprender, se perguntar, mudar e evoluir.
Termino esse post perguntando qual é a sua fome? Porque comer se tornou um problema? Porque nós mulheres medimos os outros e nos medimos? Porque a forma do corpo é tão importante? Onde a saúde entra na questão do peso? Qual a fantasia dos distúrbios alimentares? E por último, quem é o vilão, o olhar do outro ou o espelho?
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Taiany Araujo
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