Esses dias a Bells escreveu um post pra questionar se as pessoas assexuais fazem mesmo parte da comunidade LGBT+, nele ela fala da sensação de não fazer parte. Só que antes de escrever o post, a gente conversou e isso me deixou pensando. Lendo sobre coisa LGBT+, eu vi que esse é um sentimento não só da comunidade assexual. E hoje eu quero falar sobre isso, especialmente pra quem faz parte da comunidade LGBT+.
É as garotas lésbicas falando dos caras gays que tomam espaço (e, ei, ser gay não acaba com machismo). Aí vem o pessoal bi e fala do apagamento e exclusão dentro da própria comunidade. Aí chega a galera pan e faz o mesmo. Daí vem o povo assexual pra também dizer. E os trans*? Que estão ali nem por uma questão de atração sexual, mas de gênero. É uma série de questões tão diferentes que o que mais tem é transfobia dentro da comunidade LGBT+.
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A gente usa LGBT+ pra englobar todo mundo (quando não usa gay), a gente fala "personagem LGBT+" ou "representatividade LGBT+", ou até como o termo queer indica - o pessoal rejeitado pelo padrão dominante hétero/cis. Só que é muito, muito fácil se esquecer que não é uma comunidade única onde cada indivíduo sofre o mesmo problema. Ser oprimido é a experiência unificadora, mas como a opressão acontece muda entre cada um.
Cada grupo tem a própria cultura, tem as próprias necessidades, lida com questões diferentes.
A partir do momento que alguém começa a falar "A comunidade LGBT+ é" ou "A comunidade LGBT+ precisa", você já está falando merda e passando por cima de alguém.
Engraçado é que toda essa discussão começou quando eu escrevi um post que mostrava como a comunidade assexual vs. gente queer que sente atração sexual tem necessidades diferentes. Um é literalmente reprimido por sentir atração, o outro por não sentir. Como é que você luta contra isso? Se você enfiar muita coisa sexual, você começa a marginalizar gente assexual. Se você enfiar muita coisa não sexual, você reforça a opressão das pessoas queer alosexuais (=que sente atração sexual).
Ex:
a questão da Elsa ter uma namorada
Se você fala que É LEGAL ELA TER UMA NAMORADA. Isso vai contra as pessoas assexuais que ficam feliz e buscam representatividade nela.
Mas se você fala AH, ELA NÃO TINHA QUE TER NAMORADA PORQUE ELA TEM QUE SER ACE (não que gente assexual não possa namorar) - você tá literalmente contribuindo pra homofobia, dando peso à visão de que a Elsa gostar de mulher é algo ruim.
(a solução, no caso da Elsa, seria ter uma representatividade digna de alguma coisa. porque verdade seja dita: a gente pode fazer headcanon do que quiser, mas graças a heteronormatividade a leitura universal é de que ela é hétero)
Então nesse exemplo você tem 2 grupos dentro da comunidade LGBT+ com necessidades contrárias que precisa de soluções diferentes.
Mas algo mais do que isso, e esse é o ponto-chave desse post: por serem grupos diferentes, por não entenderem a perspectiva do outro, acabam se sufocando e contribuindo pra opressão.
É engraçado que uma das críticas comuns é "nossa, tá agindo igual a hétero". Mas de certo modo, acaba agindo mesmo - no sentido não de ser privilegiado, mas ser ignorante sobre a experiência do outro e passar por cima.
E algo que eu vou dizer: todos - todos - TODOS - os grupos dentro da comunidade LGBT+ fazem isso.
Principalmente porque não existe a consciência de que os grupos são diferentes, tem necessidades diferentes e experiências diferentes.
Isso não é culpa exatamente de ninguém, isso é um reflexo da heteronormatividade. Todo mundo cresce sem informação, sobre si mesmo e os outros. Também cresce internalizando preconceitos e rejeição. E não existe nenhum "GUIA DEFINITIVO QUE EXPLIQUE TUDO PRA TODO MUNDO". Pra encontrar informação tem que ficar batendo cabeça na internet, acaba se misturando em grupo de discussão, vendo barraco no twitter, guerra de fandom, gente hétero falando merda e o clássico "isso não existe". E em português tem menos conteúdo ainda. Como é que a pessoa sabe no que acreditar? É difícil, ainda mais quando se trata de uma experiência que você não vive. Leva tempo também e você tem que ter sorte de esbarrar nos conteúdos certos.
O resultado: As pessoas viram mestres na própria experiência, mas não sabe nada dos outros.
E pior: normalmente as pessoas não têm consciência de que não sabem dos outros. Elas acham que, por ser da minoria, por ser da "comunidade LGBT+", eles experimentam o mesmo ou sei lá. Elas esperam que os outros saibam sobre ela, mas... ela sabe sobre os outros?
Além disso, é comum encontrarem grupos onde são aceitas, mas são espaços isolados.
E pior: normalmente as pessoas não têm consciência de que não sabem dos outros. Elas acham que, por ser da minoria, por ser da "comunidade LGBT+", eles experimentam o mesmo ou sei lá. Elas esperam que os outros saibam sobre ela, mas... ela sabe sobre os outros?
Além disso, é comum encontrarem grupos onde são aceitas, mas são espaços isolados.
É igual filme high school americano que tem várias mesas diferentes na escola - a das patricinhas, a dos nerds, etc. Só que aqui você chega lá e "aqui são as pessoas trans, aqui as pan, aqui os gays...". Então um não aprende sobre o outro.
Dica: a forma mais fácil de aprender é seguir pessoas de cada grupo nas redes sociais. Dessa forma, você tem contato com o conteúdo não como um textão educativo, mas você vê a pessoal real ali vivendo, vê os assuntos normalizados no cotidiano, vê como isso tem impacto no que ela assiste, escuta, nos problemas que ela lida. Humaniza a pessoa.
Porque, aliás, esse é o ponto: PESSOAS LGBT+ EXISTEM NO MUNDO REAL. A GENTE SÓ NÃO VÊ PORQUE O MUNDO FAZ ELAS VIVEREM ESCONDIDAS APAVORADAS. SE A GENTE QUER TER UM MUNDO INCLUSIVO, A GENTE PRECISA COMEÇAR A VER. A CONSIDERAR AS NECESSIDADES DELAS COMO REAIS.
Enfim, a conclusão é:
se você é homem gay, você ainda pode ser lesbofóbico, bifóbico, acefóbico, transfóbico (e machista e racista).
se você é lésbica, você ainda pode ser bifóbica, acefóbica, transfóbica.
se você é bi, você ainda pode ser lesbofóbico, acefóbico, transfóbico.
se você é assexual, você ainda pode ser homofóbico, lesbofóbico, transfóbico.
se você é trans, você ainda pode ser homofóbico, lesbofóbico, acefóbico.
Tipo, eu vejo muito todo mundo (todo mundo) reclamar de SOFRO ATÉ DENTRO DA COMUNIDADE LGBT+.
Pode ler qualquer gente bissexual falando de bifobia - "a gente é rejeitado pelos hétero e... até dentro da comunidade!!!"
O que é tudo verdade.
E é um problema que precisa ser apontado.
Mas...
Mas............
O que a gente dificilmente vê é: gente da comunidade LGBT+ reconhecendo que não conhece os outros grupos.
Gente ativamente trabalhando pra desconstruir os próprios preconceitos, da mesma maneira que espera que os héteros façam.
ainda tem essas questões (fonte do post) |
(E aqui vai um detalhe sobre esse "até mesmo dentro da comunidade!" - isso normalmente vem carregando a nossa rejeição internalizada por aquele grupo. É muito, muito fácil acabar usando esse "mesmo quem é LGBT+!!" como justificativa pra homofobia/bifobia/acefobia/transfobia, até porque é uma razão real pra ficar puto, só que ela costuma carregar a rejeição internalizada sem a gente ver)
Como eu disse, não é culpa de ninguém e muito menos por maldade.
Então fica aqui esse post pra gente começar a ganhar noção de que "LGBT+" é formado por diferentes comunidades e:
1. Todo mundo é diferente!!! Todo mundo tem problemas específicos que não batem com dos outros!!! (Se você pensa que seus problemas são únicos e todo mundo tá igual unido nesse lugar "homogêneo" que é a comunidade LGBT+, é provavelmente porque você não faz ideia sobre os outros grupos!!!)
2. Todo mundo se sente meio de fora, todo mundo se vê excluído ou precisa lutar pra ganhar espaço - dentro da comunidade LGBT+ e no mundo como um todo.
3. Todo mundo precisa se desconstruir em relação aos outros, ou você vai tá contribuindo pra perpetuar opressão sem ver!!!
4. Cuidado que nessa mágoa por não ser visto dentro da comunidade, você pode estar carregando rejeição internalizada pelos outros!!!!
5. Comunidade LGBT+ não é uma entidade soberana que existe em outro plano, é você!!!
6. Tá todo mundo fodido no mesmo barco e sem conhecimento!!! Por isso que você precisa de visibilidade!!! Por isso que você é oprimido!!!! Por isso que pra você existir já é um ato de resistência!!! O mundo trata como se você não exitisse!!!! Você não tem o privilégio das pessoas serem informadas sobre você!!!!!!! Isso é ser LGBT+!!!!!!!!!
7. A notícia boa é que: você tem a chance de informar, de moldar a própria narrativa, de lutar contra isso e determinar como devem tratar você. É claro que você pode não querer fazer isso, mas vai sempre sofrer com a apagamento e pisões, porque... peraí, porque você é da parte oprimida! Yey!
8. Como eu disse, existir já é um ato de resistência.
9. O que você tá experimentando quando não te entendem ou te excluem é impacto de ser uma minoria oprimida!! Parabéns!!!
10. Ser de um grupo oprimido não te deixa livre de colaborar pra opressão de outro grupo da comunidade LGBT+!!!!
11. Quanto mais você aprende sobre os outros grupos, mais você vê que não tá sozinho apesar das diferenças!!!!
12. Você ainda aprende a respeitar os outros!!!!!!
HAUHUAHAUH
Enfim, esse post não é dedicado a ninguém específico nem a um grupo específico, apesar de ser um fruto do post da Bells. Eu literalmente já vi gente de todo grupo com esse pensamento dizendo literalmente as mesmas coisas. Na semana que eu discuti com a Bells, inclusive, eu conversei com gente de todas as letras ou acabei lendo textos que refletiam essa sensação de não fazer parte da comunidade.
Lembro de uma vez no Batdrama (a newsletter que eu escrevo) quando eu compartilhei uma entrevista com uma mulher trans, realmente não lembro de detalhes pra reencontrar a entrevista, mas ela esteve durante as revoltas de Stonewall (o bar nos EUA e evento que deu um pontapé pela luta de direitos LGBT+ lá), ela fala sobre como as pessoas trans - que começaram a revolta - foram apagadas da história da revolta. Comenta sobre uma votação pra ver se a sigla "LGBT+" ia ter o T, fala que até hoje tem gente dentro da própria comunidade que faz campanha pra tirar o T da sigla LGBT+.
Inclusive, teve aquele filme que fizeram, protagonizado por um homem branco. Uma revolta que começou com mulheres trans (que não eram hétero, nem brancas), deu empurrão na luta por direitos LGBT+, foi contada como a conquista de um homem gay branco.
Lembro de uma vez no Batdrama (a newsletter que eu escrevo) quando eu compartilhei uma entrevista com uma mulher trans, realmente não lembro de detalhes pra reencontrar a entrevista, mas ela esteve durante as revoltas de Stonewall (o bar nos EUA e evento que deu um pontapé pela luta de direitos LGBT+ lá), ela fala sobre como as pessoas trans - que começaram a revolta - foram apagadas da história da revolta. Comenta sobre uma votação pra ver se a sigla "LGBT+" ia ter o T, fala que até hoje tem gente dentro da própria comunidade que faz campanha pra tirar o T da sigla LGBT+.
Inclusive, teve aquele filme que fizeram, protagonizado por um homem branco. Uma revolta que começou com mulheres trans (que não eram hétero, nem brancas), deu empurrão na luta por direitos LGBT+, foi contada como a conquista de um homem gay branco.
Só pesquisando sobre o nome da mulher trans, eu encontrei esse trecho em um texto:
"As contribuições de [Sylvia] Rivera e [Marsha P.] Johnson para a revolta não foram muito divulgadas. Inclusive, mesmo sendo tão icônico quanto Stonewall foi para os movimentos de libertação gay que surgiram na década de 70, ele também se tornou um símbolo de um movimento, na maior parte branco e de homem, que marginalizava mulheres e pessoas de outras etnias."
Também encontrei essa parte em outro texto:
"Mesmo que bissexuais tenham começado a formar uma cultura em separado e grupos separados na década de 60, e tido que lutar contra quem insistia que tinha que ser "exclusivamente homossexual"..."
Encontrei isso em 2 segundos que eu não tava nem procurando, tinha ido só ver o nome das mulheres trans.
Ou seja, esses conflitos dentro da comunidade não são novos. (e é claro que a gente não sabe sobre isso, onde é que a gente aprende História LGBT+? Acho que nunca nem peguei livro de biologia que falasse que existe gente bi, homo, ace, pan, etc. Conhecer sua história é um privilégio que gente LGBT+ não tem.)
E tem um outro detalhe aqui em toda essa conversa. Mesmo sendo apagadas, mesmo com todos esses problemas, mesmo sendo de grupos diferentes - todas essas lutas contribuíram pra maior visibilidade e aceitação da comunidade LGBT+ como um todo. Essas lutas abrem espaço pra gente, a sociedade como um todo, entender e aprender que ser hétero/cis não é uma obrigação, não é a única opção, não é o ideal e nem o certo. E todo mundo que tá fora do espacinho hétero/cis se beneficia com isso.
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