Esses dias eu escrevi um post explicando o que é trope e depois um sobre por que entender tropes é importante pra representatividade. E juntando essas informações, eu acabei me dando conta de que não existem tropes pra minorias - e por isso tem muita coisa que a gente não vê. Talvez essa seja até a razão por trás das "lentes hétero" e "lentes branca".
Enquanto eu explicava o que é trope, eu escrevi isso:
"Pensando nisso, tropes são como símbolos em movimento. Você vê um sinal vermelho, você sabe que ele significa "pare", é uma convenção social, que representa toda a ação de "parar movimento" e você sabe que pode levar multa ou sofrer acidente se passar, etc. Como você sabe disso tudo só olhando pra uma luz vermelha??? Porque ela não é uma luz vermelha, ela é um símbolo que representa algo. Do mesmo modo, acho que os tropes são tipo um símbolo em formato de ação completa - tipo se esbarrar no corredor - que significa toda uma ideia - ELES VÃO SE APAIXONAR. Tropes são esses sinais narrativos. Uma mulher caiu em um buraco, é uma placa que diz "UM HOMEM VAI APARECER PARA SALVÁ-LA". Eles se tornam sinais, porque através de repetição a convenção é criada, e nós ficamos "programados" a esperar que isso aconteça."
E enquanto eu falava sobre tropes e representatividade, eu chamei atenção para o fato de que a nossa leitura de trope depende de certos fatores:
"gênero (raça, sexualidade, etc) é algo que altera completamente o trope"
Ou seja, o trope não é só uma "ação", é uma "ação" em um contexto cultural.
É por isso que existem tropes como "Black Dude Dies First", "Mangst", "Spicy Latina" ou "Bury Your Gays" - se você colocar qualquer outra pessoa no lugar fazendo a mesma coisa, deixa de ser o trope.
- Agora, o que é lente hétero e lentes branca?
São termos normalmente usados pra descrever como as pessoas, "enxergando tudo de uma lente hétero", não conseguem ver coisas como química entre pessoas de mesmo gênero ou casais interraciais. Como não vê o potencial em personagens que não sejam hétero/branco além de algo estereotipado.
É dessas lentes que saem aquelas afirmações de "maas esse casal surgiu do nada!!!" quando surge um casal de mesmo gênero. Foram essas lentes brancas que fizeram os escritores de Supergirl descartarem o James pra namorado da Kara, mas acharem lindo ela e o Mon-El.
Agora juntando tudo isso, nos leva a...
Se você tem esses "sinais" fictícios pra indicar certas coisas em história, mas minorias não são contabilizadas nos principais... ou seja, quando não existem sinais pra indicar essas coisas com minorias... a gente não vê.
Um cara negro pode dar todas as flores do mundo pra garota branca, pode flertar, pode ficar olhando com paixão 24h por dia, pode ser fofo, pode fazer qualquer coisa, mas ainda não vai ser considerado romance da mesma que consideram quando um homem branco e uma mulher branca "meio principais" dividem a cena por 1 segundo.
Enquanto eu procurava uma capa para o post, encontrei um texto no Black Girl Nerds que é "O que shippar Michonne me ensinou sobre racismo":
"Um monte de gente realmente não vê mulheres negras como possíveis interesses românticos, não importa com quem elas estejam"
"Uma série muuuuuito popular num canal grande, fazendo a garota negra ser o interesse romântico do protagonista (branco)? Honestamente, eu não pensei que a AMC teria coragem de fazer uma coisa tão fora da caixinha como essa - e quão triste é que fazer uma mulher negra ser um interesse romântico seja considerado pensar fora da caixa?"
É por isso também que a Moana não ter nenhum interesse romântico no filme não é tão "revolucionário" quanto a Merida ou qualquer outra garota branca não ter. Pelo contrário, a mensagem muda completamente. Olha aí a etnia/raça mudando o trope.
e digo mais, em Frozen a garota branca também ganha um namorado pq a Anna é a protagonista a única surpresa de Frozen é ser um filme da Disney com mais de uma garota relevante. |
Enfim, como eu disse lá, o trope é feito de repetição, mas minorias não recebem espaço o bastante na ficção pra gente ter tropes positivos enraizados dessa maneira.
É claro que existem tropes com minorias. Inclusive, acontece algo diferente, as minorias têm a própria forma de ler a história. Porque na real, elas colocam a própria vivência na leitura também, então tipo a garota negra vai ver a possibilidade de romance pra ela ali, ela enxerga os sinais.
Outra coisa que eu vi acontecer, é que minorias também buscam muito ficção onde elas existem. Por exemplo, eu vejo garotas queer que já assistiram praticamente todas as obras de ficção onde existem garotas queer. Enquanto a pessoa hétero vai assistindo as coisas hétero e só esporadicamente vê um personagem queer ali de fundo. Isso significa que a garota queer é familiarizada com os tropes pra f/f enquanto a pessoa hétero não.
É por isso que depois de um tempo garota queer já vai ver mulher queer aparecer e espera que ela vá morrer em algum momento, porque "mulher gay" na história é sinal pra VAI TER TRAGÉDIA. Enquanto a pessoa de fora vê uma ou outra morrer ali, talvez nem se lembre de personagem queer nenhuma, então não reconhece o problema.
É como ir pra um país diferente onde o sistema de placas lá é completamente diferente do nosso. O estrangeiro tá andando na rua e WOW DE ONDE VEIO ESSE TREM EU QUASE MORRI, SAIU DO NADA!!! enquanto você que é do lugar aponta pra placa ali, "cara, literalmente tá avisando aqui que isso ia acontecer". E o estrangeiro: MAS COMO EU IA SABER QUE UMA ESCADA TORTA ENCOSTADA NA PAREDE SIGNIFICA TREM???????
gente hétero quando um casal de mesmo gênero é canon HAHUAH mentira, hétero não se importa tanto em tentar entender |
E, como, por ser uma minoria, esses grupos acabam criando um espaço próprio dentro de fandoms, tem muita coisa passada ali que é trope pra eles, mas pra pessoa de fora não é. Ex: A Loira e a Morena. Um monte de ships é com a garota loira e a morena, ao ponto que já vê uma loira e uma morena se aproximando e: SÃO ESSAS, ESTÃO JUNTAS, OLHA O AMOR.
Parece loucura, mas é assim que tropes funcionam. Um padrão repetido tantas vezes que você vê o "sinal" ali e já sabe o que significa.
Além disso, existe uma questão específica sofrida por minorias que é, tudo bem, até existem tropes na cultura dominante sobre elas. Mas a maioria é estereotipado. Por exemplo, o Melhor Amigo Negro. Cada super-herói da Marvel pra não ser racista precisa aparecer com pelo menos um (01) Melhor Amigo Negro, a pessoa negra podendo ser substituída por uma outra minoria étnica. Todos os filmes da Marvel fazem isso.
Mas o Spicy Latina, por exemplo, eles pegam literalmente mulheres de um grupo inteiro como "sinal" de "mulher apimentada/sensual" etc. É quase tão profundo, que Hollywood não consegue nem ver mulher latina além disso direito. Se é uma mulher latina, ela tem que ser spicy de alguma forma. Em Fear The Walking Dead, a garota latina (interpretada por atriz da europa rs), é quem vai seduzir um soldado. No filme Drive, aquele com o Ryan Gosling, a garota principal no livro é latina, mas como ela é descrita como uma garota delicada/que precisa ser protegida, o diretor simplesmente não conseguia ver nenhuma latina dessa maneira, então escolheu uma atriz branca.
Mesma coisa vai pra duas mulheres se beijando, na cultura dominante é um trope que significa "sexual" e "experimentação", então quando aparece duas mulheres se beijando não importa o contexto, o pessoal lê como se fosse um sinal de PORNÔ PEGAÇÃO MENINAS SAFADINHAS DANDO A LOUCA (é dessa leitura que vem a ideia de que f/f é fan-service). Mas ainda é usado demais como sinal "sexual" e "experimentação", tipo o filme Ghost In The Shell (a versão white-washed com a Scarlett Johanson), que mostra no trailer ela beijando outra mulher. A não ser que no filme mesmo seja um casal, eles só estão usando o símbolo de "experimentação" pra dizer "olha aqui a robô vendo como é ser humana". E repara como seria alterado se ela tivesse beijando um homem - ela estaria experimentando também? Lógico. Mas não teria o mesmo significado de um beijo f/f que carrega isso de "FAZENDO TUDO, VIVENDO, VENDO TODAS AS POSSIBILIDADES".
E repara também como a gente não vê robô homem saindo beijando outros homens... "mulher" poderosa em ficção científica (robô, experimento, etc) normalmente aparece só em histórias que querem discutir o que é "SER HUMANO", porque "mulher" é símbolo de "sensibilidade, fragilidade, etc". Então quando você quer mostrar o lado "humano" de um robô ou experimento, você coloca uma mulher pra representar isso.
Eu já falei sobre a "mulher experimento" aqui em "Retratando mulheres com o filtro feminino"
E é escroto, né? Gente hétero tem o privilégio de ter um beijo na ficção que significa amor, união, carinho, desejo, felizes para sempre. Na verdade, tem TANTO beijo f/m que você tem vários tropes dependendo de como é. Mas quando você tem pessoas do mesmo gênero se beijando, é reduzido a uma coisa nojenta.
Em uma metáfora meio louca pra isso tudo...
Simplesmente, ver histórias com minorias é um pouco como digirir em uma cidade estrangeira sem sinalização. Carro bate, rua dá em lugar nenhum, parece que surgiu coisa do nada, nada faz sentido. Só que o que as pessoas não param pra pensar, é que existe nessa "cidade estrangeira" um sistema de sinalização próprio conhecido pelos moradores dali, apesar de que mesmo pra eles é um sistema beeeem simplista faltando um monte de coisa. E quando os moradores da cidade tentam explicar essa sinalização pra os estrangeiros, o pessoal reage CÊ TÁ LOUCO, NÃO TEM NADA AÍ, EU HEIN.
Agora resumindo todo esse texto como uma pessoa normal: Não existem tropes pra minorias. Não existem tropes com nunces, não existe diversidade de tropes. Os poucos que existem são extremamente estereotipados e tóxicos. Enquanto isso, as minorias também têm uma própria cultura com alguns dos próprios tropes que eles sabem reconhecer, mas quem só conhece a cultura dominante, não.
Eu acho que até escrever esse texto, nunca tinha parado pra pensar nessa "falta" de tropes pra minorias e como isso explica por que algumas pessoas não reconhecem alguns sinais ou todo esse tendencionismo hipócrita que rola discutindo ficção de "X é romance com eles, mas esse mesmo X entre esses dois não é".
obs: Lembrete de que os termos "minoria" e "maioria" não querem dizer QUANTIDADE DE PESSOAS, mas o acesso a voz na cultura geral. A maioria é a cultura dominante e ela pode ser dominante mesmo que seja a cultura de um número menor de pessoas. Eu já expliquei isso nesse post.
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