300 Ben Hur

Quando usam o passado pra tentar justificar tratar personagem mulher mal

14.2.17Dana Martins


Faz tempo que eu não discuto representatividade da mulher aqui, hm? Então vamos aproveitar. Hoje vamos conversar sobre aquela ideia de "ah, mas naquela época mulher só podia ser assim mesmo" quando a gente vê um filme de época que a mulher é só secundária mãe/irmã/namorada de algum homem. 

Eu assisti Ben Hur por livre e espontânea pressão, o que me levou a uma conversa sobre isso.

Aqui um resumo do filme (com spoiler, mas acho que vai precisar pra entender) pra dar um contexto do que eu vou falar depois:

O filme é um remake e conta a história de dois irmãos, um judeu um romano???, que cresceram juntos até o adotado romano decidir que quer fazer a própria vida porque ali ele é só um bastardo ali e vai embora, lutar com o exército romano. Anos depois, quando Roma tá começando a tomar conta de Jerusalém, ele volta como chefe dali.
Aí blablabla o irmão judeu que era um cara rico era aquele de "não violência, vamos viver em paz" mesmo quando povos mais pobres dali tão perdendo suas terras para Roma e confrontos rolando pela rua. Só que aí ele acaba sendo acusado de cometer um atentado contra um cara romano e a família dele é pega e ele vira escravo.
Passa uns 5 anos num navio, até tudo afundar numa batalha e ele se livrar blablabla aí no fim ele volta a Jerusalém pra num torneio de biga (aqueles carrinhos carregados pelo cavalo, que ficam rodando pra ver quem chega primeiro, no meio disso um monte de gente morre) e nesse torneio se livra das acusações e vence o outro. Jesus aparece de fundo também e é o Rodrigo Santoro.

(fim do spoiler)

E daí tudo isso? 

E daí que no fim do filme tá eu, meu amigo e a esposa do meu pai. O amigo comenta "ih, até que não teve nenhum estupro, né?" - em tom positivo, porque filmes de época normalmente mostram estupro graficamente. O filme não mostra, apesar de mencionar várias vezes e mostrar homem abusando mulher no fundo.

essa foto deve ser da primeira versão do filme, que eu não assisti

Mas ok. Só sei que isso leva a eu não lembro qual de nós, talvez eu, comentar sobre como as mulheres na história são um nada, elas são tratadas mal, tão ali pra ser... nada mesmo. Só tem 3 mulheres o filme: a esposa do protagonista, que consegue fugir e vive nas ruas ajudando os pobres. A irmã e a mãe do protagonistas, que são aprisionadas num lugar que dá a entender que foram estupradas e também ficam com lepra, a mãe já tá alucinando. (jesus cura tudo depois) Além disso, a irmã é o interesse romântico do cara romano. A única coisa que ela faz no filme é gostar dele, mesmo depois de tudo o que passou por causa dele. ok.

A resposta que a esposa do meu pai deu foi "ah, mas naquela época mulheres eram assim mesmo"

Aí a conversa acabou, eu não tinha nem palavras pra começar a explicar como ela tava errada. Tipo, eu até tinha, mas é tanta coisa, que sabe quando você fica cansado porque você sabe que é muita coisa pra falar? E, é claro, na hora meu pensamento tava uma mistura de fragmentos irritados, do tipo AAAAAAAAAH NÃO e ao mesmo tempo:

com todo respeito,

eu vou ignorar tudo o que você acabou de dizer


Mas meu cérebro não me deixou em paz. HAUHAUHA E é por isso que estamos aqui.

Acho que a resposta que eu queria ter dado se resume a 2 coisas:

1. Ok, mesmo considerando um contexto muito opressor pra mulher, que ela é obrigada a viver de certa forma tipo ser só mãe ou esposa - ela ainda existe como pessoa. Ela ainda é um ser humano em toda sua complexidade. Ela ainda tem sentimentos, desejos, medos, ainda é dona de si no sentido mais elementar. Então nenhuma época justifica escrever uma mulher superficial/estereótipo que não tem autonomia e só serve aos homens na história.

Além disso, cá entre nós, isso não é muito diferente do presente. Esses dias mesmo eu vi Sing Street - um musical que se passa na década de 80 (na Irlanda? algum lugar assim). E nesse filme também mulher só existe como interesse romântico e mãe (no máximo, a professora). Eu poderia escrever um filme inteiro hoje em dia onde as mulheres tem o mesmo tratamento das de Ben Hur, e de fato muitos filmes são assim. Então... qual é o ponto? 

Um contexto opressor não justifica tratar a personagem mulher mal

E mais: eu não tenho e aposto que a esposa do meu pai também não tem, um conhecimento profundo sobre a sociedade da época. Muitos desse "ah, antigamente as mulheres eram tratadas mal" é o tipo de crença que todo mundo dá como verdade, mas nunca parou pra procurar os fatos mesmo. É o relativo a acreditar que a terra é plana ou existe uma cachoeira no fim do mundo. Principalmente porque isso parte de uma visão evolutiva da História da Humanidade, como se existisse uma cultura única que sai do mesmo ponto e vai pra o mesmo ponto de modo uniforme. Na história recente do Brasil - sim, nós estamos melhor do que há 100 anos quando mulher nem votar podia, mas não quer dizer que foi sempre ruim e que foi ruim em todos os povos e culturas ou ruim da mesma forma.

Fui ver as datas agora e o Ben Hur se diz adaptado na época da morte de Cristo, enquanto 300 (o filme) se passa 480 A.C. e tanto 300 quanto a continuação desafiam essa ideia de "naquela época era mesmo assim." As mulheres vão pra guerra, são líderes. Não tô aqui discutindo a qualidade da representação em 300 e nem a veracidade, porque eu não parei pra pensar isso a fundo, mas eu sei que o filme mostra mulheres mais donas de si e mostra culturas onde a relação de gênero é diferente.

e as mulheres Espartanas tinham mesmo muito mais liberdade,
elas sozinhas já acabam com todo argumento de "era assim mesmo pras mulheres"




Resumo: ser antigo não significa que as mulheres eram tratadas mal e muito menos que o filme (livro, jogo...) precise tratar mal.

Interessante também que pessoal justifica muito estupro em filme antigo com "naquela época era assim", mas no Brasil acontece um estupro a cada 11 minutos e nos Estados Unidos 1 em cada 5 estudantes na universidade são estupradas, a tal ponto de que um estudo definiu como uma epidemia. Ainda assim, a gente assiste 92318239823 filmes que se passam hoje em dia sem ver estupro (graças a deus). O ponto é que acontecer numa época não justifica ficar mostrando. E eu nem vou entrar no que significa essa fixação com mostrar estupro em filme "antigo"...

2. Estar preso a um determinado papel e situação de opressão não significa que ela não possa ter autonomia, que a personagem não possa ser desenvolvida ou até que a história não possa centrar nela. 

Eu sei que eu já entrei nesse assunto na parte 1, mas nesse segundo tópico o foco é discutir em termos narrativos mesmo, de criação da história. Quando a gente discute representatividade, não dá pra resumir a análise a "o papel que a mulher tá fazendo". Ex: Ah, ela é uma mãe, mulher só podia ser mãe na época. 

A questão aqui não é querer que a mulher seja uma Guerreira Poderosa, ou Rainha, ou Dona de Terras ou qualquer coisa que você acha que ela não poderia estar fazendo naquela época (mas que as mulheres provavelmente fizeram). A questão é que representatividade boa também acontece através de escolhas narrativas.

avó, filha, mãe - e ainda assim, personagens complexas e interessantes
leia a resenha de One Day At A Time aqui


A história é centrada em quem? O que a mulher tá fazendo nessa história? Ela tá ali pra fazer algo independente de homem ou ela só tá ali pra mover a história do homem pra frente? Ela é mostrada como dona de si, capaz de resolver os próprios problemas? Ela parece um ser humano real em quem você se inspiraria e gostaria de ser na história? 

Essas perguntas podem levar a respostas tendenciosas - em Ben Hur, de fato, a esposa dele briga com ele quando ele se recusa a confrontar os romanos e ajudar os povos mais pobres. Ela consegue fugir, sem ajuda de ninguém, quando os romanos invadem a casa deles. Ela constrói uma vida sozinha por anos e cuida dos pobres da cidade. Quando o marido conta pra ela que vai se arriscar no combate de vida ou morte contra o romano - ela vai lá sozinha discutir com o romano. 



Vou te falar, isso ainda é muito bom considerando como tratam (a mãe e irmã) as mulheres em histórias normalmente, mas ainda está longe de ser bom. Qualquer um dos homens - o protagonista, o romano, o Morgan Freeman e até o Jesus Brasileiro - recebem muito mais peso narrativo. Inclusive, o protagonista só muda quando escuta o Jesus Br dizer o que a mulher tava dizendo o filme inteiro já.

Mas a minha parte preferida aqui é que o protagonista passa 5 anos como escravo. A situação da mulher podia ser bem ruim na época, mas o próprio protagonista vira escravo que passa 5 anos dentro de navio remando sem poder fazer nada além de remar mais. Não sei se ficou claro, mas ele: foi escravizado. Ele vivia na parte de baixo de um navio remando. E mesmo assim, ele ainda é o protagonista da história. E mesmo assim, ele ainda é apresentado com autonomia. Mais até do que isso, é durante o período como escravo que ele passa por uma transformação simbólica para "mais poderoso". Você sabe que ele tá comendo o pão que o diabo amassou, mas você o admira pela força e persistência. A história da escravidão, pra ele, vira fonte de inspiração, é o que dá força a ele pra vencer a batalha na arena mais tarde.

Então tipo................. a situação da mulher na época justifica ela ser tratada mal na narrativa, porque "era assim mesmo", mas a do homem não?

E se a gente expandir isso pra ficção no geral, vamos encontrar 923839823 histórias em que homens de alguma forma são definidos por um contexto ruim e/ou precisam enfrentar situações ruins. Mas eles ainda são protagonistas, eles ainda tem valor na história, ainda tem autonomia, ainda são retratados como interessantes, o sofrimento representa força em vez de fraqueza. 

É tipo cicatriz. Cicatrizes no homem são sinais de poder, de resistência, que o cara é fodão e já enfrentou muita coisa. Em mulher vira um drama que a incapacita, um sinal de sua vulnerabilidade e fraqueza.

Enfim, nada justifica não dar a mulher um papel decente e que não seja só bengala de homem em história. 

E quando eu digo "nada" é nada mesmo. Beijinhos


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1 comentários

  1. Simplesmente amei esse post, você falou bem didaticamente indicando elementos históricos e exemplos de outros filmes e séries, eu certamente tenho muito mais argumentos agora .
    http://minimundoliterario.blogspot.com.br/

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