Minha super-heroína favorita faz 75 anos em 2016, e em vez de continuar comemorando em silêncio, decidi compartilhar minhas reflexões aqui. E olha que elas são muitas. Até porque, bom, parece que tem mais motivo pra sofrer do que pra comemorar, e quando as coisas tão ruins é que a gente mais quebra a cabeça e pra entender o porquê e buscar formas de mudar a situação.
Este texto é uma tentativa de responder essa questão aparentemente contraditória aí em cima: “por que tem tanta coisa pra lamentar se é um aniversário?”.
Eu tenho 20 anos e faço parte de pouco tempo dessa história toda (75, nem minha avó tem isso), e prefiro não vir aqui e dizer o quão importante a Mulher-Maravilha é historicamente. É óbvio que ele ela é, e muito — começa com o fato de ser a primeira super-heroína a fazer sucesso de verdade lá quando foi criada, na época da 2ª guerra mundial —, mas eu não vivi isso tudo e não me sinto confortável (nem empolgado, na verdade) para levantar essa discussão. Além do mais, o Vics já fez algo mais próximo de uma retrospectiva aqui no blog um tempinho atrás, caso seja o que você está buscando.
O que faço é, então, vir como um fã de 2016 que percebe um problema bem grave nesses 75 anos de história: a falta de boas histórias com a Mulher-Maravilha.
"eu esperava mais de você" eu pra DC comics (quase) toda vez que acabo de ler um quadrinho da MM |
Não, não foi falta de procurar. Já são alguns anos em busca de listas, lendo as histórias disponíveis… Mas apesar de querer bons quadrinhos com ela, e apesar de parecer que com quase um século de histórias vai ter um mundo de opções, não dá pra achar tanta coisa assim. Coisa boa, então…
O primeiro motivo (e mais óbvio) é a DC ser bem engana trouxa com essa coisa de promover a existência de sua própria “Trindade”.
Mais evidências: pega Batman e Superman e conta quantos títulos mensais derivados eles têm: é Batgirl, Supergirl, Superwoman, Super sons, Nightwing, Action Comics, Detective Comics, Catwoman, Harley Quinn, New Superman… Isso só a lista de cabeça do que tá saindo agora.
OK que são derivados, mas, implicitamente, o que eles fazem é servir como outras fontes de construção e enriquecimento: de mundo, de mitologia daqueles heróis, de elenco de apoio. É por isso que todo mundo tá querendo apostar nessa coisa de universo compartilhado agora. É como nos filmes da Marvel: a gente se empolga porque são um monte de histórias, um monte personagens, e quando eles aparecem juntos numa guerra civil da vida dá uma sensação de grandiosidade inevitável.
A Mulher-Maravilha não tem e praticamente nunca teve isso. Só foi ter uma revista fixa além da principal na última década (chama Sensation Comics, reúne várias histórias fora da cronologia feitas por artistas diversos, bem aleatória mesmo) e, adivinha? Foi cancelada.
Por isso a falta de histórias icônicas e famosas dela. A falta de Anos Um, Piadas Mortais, Grandes Astros… Porque poucas vezes se deram ao trabalho de parar e dar espaço pra bons escritores escreverem coisas de qualidade, que transpassassem o genérico e não fazem histórias que ficam datadas com tanta rapidez.
A mesma coisa vale pras adaptações em outras mídias. Tudo o que ela tem na bagagem: um filme solo animado, uma série de sucesso dos anos 70, aparições aqui e ali em séries animadas (com um monte de gente dividindo tela junto) e… é isso. Sim, uma personagem tão icônica e supostamente tão importante pra DC está comemorando sua primeira aparição no cinema em 2016 com Batman v Superman, um filme que nem tem seu nome no título.
Enfim, esse tratamento desigual da suposta trindade resulta diretamente na pouca produção de conteúdo pra parte mais fraca. E conteúdo disponível é praticamente um pré-requisito pra uma personagem ter algum impacto cultural e reconhecimento digno. Mesmo que ela ganhe significado externo e social, os quadrinhos ainda são a matéria-prima das outras mídias, onde os conceitos básicos nascem e onde o herói é fundamentalmente formado.
Se a matéria primeira é escassa e, em grande parte, de qualidade duvidosa, "Mulher-Maravilha" acaba sendo só um nome, uma fantasia sem significado.
(E isso é um problema lá de fora, aqui no Brasil é outro ainda maior. Nós temos UMA opção de história disponível pra comprar em livrarias em português. Essa aí do lado. É, esgotada).
E daí que ficamos nessa. Mulher-Maravilha acaba mantendo seu status de ícone por vários fatores externos. Talvez porque seu nome é tão elucidativo quanto do “Super-Homem”, e ela acaba virando um “ícone para mulheres!!!” já no título. E, claro, porque não tem lá tantas outras super-heroínas equivalentes em história e importância nos quadrinhos. Parece que ela acaba sendo exaltada mais por falta de concorrência do que qualquer outro critério. Prova disso é que se perguntar pra uma pessoa comum qual a origem dela, os vilões ou coisas assim, vai dar pra contar numa mão só os que conseguem responder alguma coisa (o que é uma vergonha, considerando o quão único e importante o background dela é por si só).
O que nos leva ao ponto dois: além de pessoas comuns, nem mesmo a DC consegue definir direito quem a personagem é.
(Curiosidade: nós literalmente temos uma história com o nome: “Quem é a Mulher-Maravilha?”, escrita por um dos autores do roteiro do filme que sai ano que vem) |
Além de já não ser publicada em muitos lugares, ainda tem muitas histórias que trazem como premissa redefinir/consertar a história dela. Desde 2010 já foram SEIS origens sendo contadas e recontadas, e se considerar os momentos que tentaram de alguma forma mudar todo o status quo tem ainda mais. Agora mesmo no Rebirth, as premissas de revista são:
Batman - dois novos heróis surgem e fazem ele questionar seu papel como salvador de Gotham.
Superman - Um Superman de um universo paralelo acabou vindo parar no principal depois da morte do antigo e precisa lidar com esse novo papel.
Mulher-Maravilha - Tá procurando sua verdadeira identidade enquanto, numa história paralela, recontam sua chegada ao nosso mundo.
Em outras palavras, e sem entrar no mérito do quão necessário tá sendo essa “nova” origem: é mais esforço sendo empregado tentando mudar a personagem pro que ela supostamente deveria ser do que em deixar isso acontecer naturalmente por meio de boas histórias.
Acho que falta perceber que em cada batalha, em cada vilão, em cada balãozinho de fala você JÁ ESTÁ definindo que tipo de herói você tem. Não precisa tematizar toda sua história em torno de reinvenção e origem pra isso.
No caso da Mulher-Maravilha, essa mania de "VOU CORRIGIR TUDO O QUE TÁ ERRADO" acaba alimentando um ciclo de histórias que se tornam redundantes que perdem o impacto que deveriam ter. Faz com que cada novo roteirista traga outra super-heroína completamente diferente consigo, aquela que vai limpar a "sujeira" feita anteriormente com a personagem.
Isso tudo aparentemente precisa ser feito antes de criar alguma história positiva e que adicione ao cânone. Mas considerando quantas ideias diferentes que cada um tem sobre o que tem de errado com a Mulher-Maravilha, essa hora de criar algo positivo muitas vezes não chega.
(Taí algo que me irrita muito em quadrinhos: o pessoal leva continuidade mais a sério do que a qualidade da história, e às vezes fica tão preocupado com ela que se perdem no caminho. É tipo ficar na fila pra pegar a tocha olímpica, cheio de neuras se vai fazer tudo direito, não sujar, não tropeçar, não pagar mico, e não perceber que a chama em si já tá apagando).
Então ficamos nessa. Uma bola de neve de problemas que só cresce, e dificilmente deixa uma intervenção positiva ficar de pé.
Em teoria, a DC tá comemorando os 75 anos da Mulher-Maravilha de várias formas. Teve painel especial na comic con, jato invisível pro pessoal tirar foto, playlists temáticas no Spotify, barbies com o uniforme e até uns selos postais. Inclusive tão republicando algumas histórias consagradas num box especial (num preço bem razoável, considerando a quantidade de produtos e a importação. Você pode comprar na Amazon BR aqui). A ONU até vai declarar a Mulher-Maravilha como embaixadora honorária numa ação de empoderamento feminino!!!!! A cerimônia acontece na sexta (21/10).
Mas fica a questão: o que realmente fica marcado nisso tudo? O que vai deixar um legado pra personagem daqui em diante? Um evento, por mais oficial que seja, tem esse poder? Um box de republicações? Um kit de selos?
Talvez o filme solo cause esse impacto tão necessário. Ou a participação em Super Hero Girls, série animada infantil que que vai fortalecer a influência da personagem pras novas gerações.
Talvez, quem sabe, esta revista com vários artistas que vão lançar também!!!! HQs novas pra consumir! Yay!
Aí eu lembro que o Batman teve uma série especial de um ano em seu aniversário de 75 anos (e os ROBINS tiveram outra), e que o Superman teve uma minissérie especial com um time estelar e tudo, que até no Brasil saiu. E que, apesar disso tudo, a única HQ da Mulher-Maravilha disponível pra comprar no Brasil tá esgotada, e ela é, nas palavras da própria Panini, a única coisa que vão publicar pra "comemorar" os 75 anos.
É por isso tudo que eu acho difícil ficar feliz com esse aniversário: porque percebo que ninguém que tem mais influência está tentando ou se importando de verdade com ele.
Enquanto não houver boas histórias sendo feitas, e enquanto não houver pessoas escrevendo, publicando, comentando, refletindo, recriando, enfim, sendo afetadas por essas histórias, vai ser difícil essa importância tão grande que dão pra Mulher-Maravilha virar mais do que uma grande fachada.
Enquanto não houver boas histórias sendo feitas, e enquanto não houver pessoas escrevendo, publicando, comentando, refletindo, recriando, enfim, sendo afetadas por essas histórias, vai ser difícil essa importância tão grande que dão pra Mulher-Maravilha virar mais do que uma grande fachada.
TAGS:
75 anos,
CCHQ,
dc comics,
diana prince,
João Pedro Gomes,
mulher-maravilha,
Super Girl Power,
wonder woman
0 comentários