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Brooklyn: um daqueles raros casos em que o filme é melhor que o livro?

3.8.16João Pedro Gomes



Tá, talvez eu esteja sendo injusto. Mas vamos por partes.


Brooklyn. Também conhecido como o filme da maratona do Oscar 2016 que eu mais gostei e entrou pros favoritos enquanto a música magnífica dos créditos finais tocava.

Eu amei esse filme contra todas as probabilidades. Até do romance, que geralmente me faz(ia) passar longe de uma história, eu gostei. Gostei porque esse filme foi uma história de crescimento. Sobre como lugares transformam pessoas, e como o que chamamos de lar pode mudar junto conosco, não importa o quanto essa ideia pareça absurda a princípio.

É o que eu aprendi com Eilis, essa moça tão simpática quanto inocente interpretada pela Saoirse Ronan, quando ela se muda de uma cidadezinha (quase vila) da Irlanda para o Brooklyn, Estados Unidos, a um oceano de distância. Tudo isso influenciada pelo desejo de pessoas que se importam com ela de proporcionar um futuro digno para a jovem, que seria impossível se ela continuasse vendendo mortadela na mercearia de sua chefe diabólica. 

É aí que começa sua jornada rumo a um novo destino.



O filme é uma das adaptações mais fiéis que já vi e, até esse ponto da história, o livro cumpre seu papel de material original belamente. Isso fica claro na monotonia extrema com qual os primeiros capítulos se desenrolam: a protagonista vive quase sempre calada, tendo sua vida empurrada de um lado pro outro. Aceitando um trabalho que não queria. Fazendo as mesmas refeições diárias com a mãe e a irmã, única pessoa bem-sucedida da casa. Indo a festas sem vontade, servido como mera companhia para a amiga que busca um namorado. 

Uma monotonia tão grande que não tinha como não ser proposital. É esse o recurso do autor pra nos colocar na vida abafada, sem propósitos e quase automática de Eilis. Por isso é tão significativo quando ela vai para o Brooklyn, saindo desse casulo que ainda não sabe já estar apertado demais para ela. 

Até então, Eilis sempre havia imaginado que iria morar na cidade a vida inteira, como a mãe tinha feito, que iria conhecer todo mundo ali, ter os mesmos amigos e vizinhos, a mesma rotina nas mesmas ruas. Eilis esperava encontrar um emprego e mais tarde se casar com alguém, deixar o emprego e ter filhos. Agora, tinha a impressão de ter sido selecionada para uma coisa para a qual não estava nem de longe preparada, e isso, apesar do medo que lhe acarretava, lhe dava a sensação, ou melhor, o conjunto de sensações, que Eilis julgava que só iria experimentar nas vésperas de seu casamento [...].

A trajetória de choques culturais e adaptação ao novo mundo é o objeto que recebe maior foco no livro. Inclusive, ele acerta muito nesse ponto, indo além do filme em todos os aspectos da vida de Eilis. A pensão onde mora, a loja de departamentos em que trabalha, a faculdade, o relacionamento... Tudo, traz uma sensação gradual, quase abstrata, de amadurecimento pra personagem. Ela descobre o amor, o sexo, a diversidade, o assédio, a caridade, o tédio e a saudade. É uma história de formação tão sutil que, quando você vê, já tem na sua frente uma mulher formada e adaptada ao novo mundo, em nada parecida com aquela que veio vomitando no corredor do navio por ter sido trancada para fora do banheiro.

"Eu ia só dizer que me contaram que mulheres de cor andam fazendo compras na Bartocci's", disse a srta. McAdam.
Por um momento, ninguém falou nada. 
"Também ouvi isso", disse Sheila Heffernan em voz baixa, depois de uma pausa. 
Eilis olhou para seu prato. 
[...] 
"Eu não gostaria de ter de atender essa gente numa loja", insistiu a srta. McAdam.
[...]
"Elas são muito simpáticas", disse Eilis. "Algumas usam roupas lindas". 
"Então é mesmo verdade?", perguntou Sheila Heffernan. "Achei que fosse brincadeira. Bem, é isso, então. Vou passar pela Bartocci's, sim, mas só do outro lado da rua".
De repente, Eilis sentiu-se cheia de coragem. 
"Vou dizer isso ao senhor Bartocci. Ele vai ficar muito preocupado, Sheila. Você e sua amiga aqui são famosas por seu estilo, sobretudo pelas meias furadas e pelos cardigãs velhos e cafonas que usam".
"Agora já chega, todas vocês", disse a sra. Kehoe. "Quero terminar o meu jantar em paz".


Ok, minto. Em QUASE nada parecida com a jovem do começo do livro. Meu problema maior com Brooklyn foi como Eilis, apesar de esporadicamente apresentar diálogos sensacionais e atitudes que desafiam a inocência anterior, praticamente traz de volta em alguns momentos as mesmas posturas passivas do começo do livro, principalmente quando se trata da terra natal e das personagens que lá habitam. Sim, isso poderia ter sido uma estratégia para contrastar a Eilis do Brooklyn com a Eilis da Irlanda, e como esta ainda se apegava ao conforto de uma versão antiga de si mesma. Mas, durante a leitura, essa escolha não pareceu tão consciente, dando a impressão de que foi mais um retrocesso de desenvolvimento da personagem mesmo. Depois de tantos momento decisivos no amadurecimento de Eilis, voltamos a uma protagonista quase apática, cheia de arrependimentos e carente de atitudes para corrigi-los, algo um pouco irritante depois que um início de independência já tinha começado a brotar.


Pelo menos essa involução, além de me fazer ter mais certeza do quanto o trabalho de uma atriz pode decidir o sucesso ou fracasso de um papel (não sendo à toa a indicação da Saoirse ao Oscar), mostra o quanto as personagens de apoio são importantes no livro. Engraçado que, pensando agora, nenhuma delas foi memorável por si só, e não me vejo com saudades de nenhuma num futuro próximo. Mas todas funcionam muito bem ao representarem diferentes pilares da vida de Eilis: a mãe sendo a repressão que a vida na Irlanda se torna, a irmã como o exemplo a ser seguido, Tony como aquele que apresenta a Eilis o amor puro e inesperado, e o padre Flood como a personificação da fé e do temor. E a lista continua. É curioso ver como cada pessoa traz à tona uma Eilis diferente, com forças e fraquezas próprias, como todo ser humano possui. Sem eles, ela seria uma protagonista mil vezes mais sem graça, e seus diálogos e reflexões, por vezes notavelmente rasos na entrega de emoção, se mostrariam mais incômodos. 

Inconsistências à parte, o saldo que ficou foi positivo. O livro foi a extensão do filme que eu não sabia que desejava, e mesmo que eu não tivesse assistido antes, a leitura seria igualmente especial. A impressão que os dois deixam no final é bem parecida: Brooklyn é uma história de crescimento simples, cheia de conflitos relacionáveis e inseguranças universais, que tem em seu ritmo sereno sua maior virtude. O livro tem lá seus momentinhos água com açúcar, mas que não vêm carentes de sentido. Pelo contrário, traz junto um monte de traços únicos e sutis, que por não aparecerem em qualquer história desse tipo, farão com que eu não consiga o esquecer tão cedo.






- Autor: Colm Toíbin
- Editora: Cia. das Letras
- Páginas: 304.
- À venda emAmazon - Americanas - Submarino








Obrigado por permitir a expansão de uma história que gosto tanto, Cia. <3

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