bissexualidade
Carol Manzano
O poder da repressão dentro de uma cidade do interior
24.3.16Colaboradores CC
Praticamente durante a minha vida toda morei em uma cidade pequena do interior (e quando eu digo pequena, isso conta com uma população de uns 70 mil habitantes). Porém no último ano acabei me mudando para começar minha faculdade, e como uma cidade um pouco maior com pessoas de mente aberta faz diferente! Isso é exatamente aquele tipo de coisa clichê que você pensa que sabe, mas não sabe até se mudar. Porém não vou focar em todos os aspectos dessa mudança, mas sim em um especial que nos últimos tempos tem me alfinetado bastante.
Sim, eu sou bissexual e no momento tenho uma namorada... Enfim, o pessoal do CC já discutiu muito sobre isso, mas eu vim aqui para trazer o meu ponto de vista a respeito do tema, então vamos lá!
Não lembro ao certo quando descobri que era bissexual, mas foi algo que veio naturalmente, que tinha certeza e me identificava como, ou pelo menos era o que pensava. Verdade seja dita eu estava errada.
Desde que mudei para fazer faculdade nunca tinha me dado conta do monte de coisas das quais eu estava excluída. Não ouvia falar efetivamente de feminismo, nunca havia participado do mundo LBGT+ e me declarado como tal, etc. Eu vivia no mito da caverna de Platão. Era uma das pessoas acorrentadas e toda vez que eu volto pra minha cidade, ninguém acredita que existe um mundo fora desse em que eles vivem.
Uma loucura parar para pensar nisso, mas é VERDADE, e apesar de ainda não ter assumido minha bissexualidade para minha família, ou até mesmo para certos amigos que também viveram nessa cidade, EU AINDA SOU BISSEXUAL E AGORA ME ORGULHO DISSO!
Sabe, gostaria de viver em um mundo aonde nós não discutíssemos sobre a comunidade LGBT+ ser uma “aberração”, segundo algumas pessoas, ou mesmo ter que enfatizar que a culpa de um estupro ser da mulher ao invés do agressor é simplesmente inviável, horrorosa. Deus tudo isso é muito louco! E nesse último ano, na Terra do Nunca (apelido da universidade em que estudo) comecei a me sentir um agente secreto infiltrado com uma vida dupla. Porque lá eu sou exatamente o que sou e quero ser com pessoas ao meu redor que sabem e entendem isso, enquanto quando volto para minha cidade eu preciso continuar fingindo ser uma pessoa que não sou.
Mas a minha questão aqui é refletir como o lugar em que estamos inseridos influencia diretamente em quem nós somos. Sempre fui uma dessas pessoas consideradas um tipo de adolescente “rebelde sem causa”, mas quando me mudei eu não era nada disso.
Quer dizer, eu continuava incorrigível, mas a verdade é que todas essas pessoas ao meu redor me mostraram que eu SEMPRE tive uma causa pela qual lutar. Não era mais um lobo solitário no meio da floresta, eu sou parte de uma alcateia agora. E quando você percebe isso e marcha com essas pessoas, todas as coisas começam a fazer sentido, e por mais que eu ainda tenha que lutar reafirmando minha sexualidade, ainda me sinto livre.
Acho que no fundo algumas pessoas são como eu. Acham que sabem como o mundo é, acham que sabem qual é o gosto da liberdade, mas nós não sabemos até encontrar com ela pela primeira vez. E sim, eu ainda tenho um longo caminho a percorrer, mas o mais importante é como eu me sinto em relação a isso, e é bem. Porém a questão não é sobre mim, e sim sobre as pessoas que NÃO estão bem consigo mesmas, graças ao ambiente em que estão inseridas.
O que eu realmente queria contar foi uma coisa que aconteceu nesse sábado de carnaval e talvez deixe mais claro o que estou dizendo. Graças as minhas férias da faculdade eu voltei para casa e decidi sair com a minha namorada para dar uma volta, comer alguma coisa. Ela também é bissexual e nós saímos, e acabamos no centro da cidade onde estava ocorrendo toda a festa. E sabe qual foi a maior loucura da noite? Em um aglomerado tão grande de pessoas, eu vi UMA LÉSBICA E UM GAY, mas que ainda sim não posso afirmar definitivamente se eram levando em conta apenas a aparência, enfim isso foi só para dar um panorama geral. Eu sei que vi pessoas pra caralho naquele lugar, mas o ÚNICO casal de mesmo sexo que andava ali de mãos dadas era MINHA NAMORADA E EU, e cara isso é loucura!
E não é porque não existisse ninguém LGBT+ ali ou qualquer coisa do gênero, porque eu sabia que havia, mas a questão é que essas pessoas podiam muito bem estar escondendo isso durante toda a vida delas por puro medo de não aceitação e sofrimento que tudo aquilo iria acarretar, não querendo decepcionar os pais que não aceitariam, ou por exclusão ou porque qualquer outro motivo. Pessoas não assumidas e que provavelmente nunca se assumiriam graças ao ambiente em que estão inseridas não as aceitarem. Aonde seriam chamadas de aberração e até mesmo agredidas pela sua orientação. Claro que isso poderia acontecer em uma cidade grande, mas ao contrário da cidade grande, aqui nós estaríamos sozinhos e perdidos, enquanto lá as pessoas poderiam estar juntas e teriam um maior conhecimento sobre a causa.
Em um lugar em que as pessoas já te olham tordo só por suas roupas serem diferentes ou mesmo a aparência não estar dentro do “padrão”, ter uma orientação sexual diferente simplesmente não tem espaço ali. E a luta para tentar incluir isso seria brutal e árdua. Eu não culpo essas pessoas que reprimem quem são, mas se fosse por mim eu jamais aconselharia ninguém fazer isso.
E enquanto nós andávamos de MÃOS DADAS, as pessoas olhavam como se fossemos aberrações. Ouvia algum comentário ou outro, mas os olhares horrorizados eram intensos e frequentes.
Uma parte de mim gostou de alfinetar todas aquelas pessoas, de provocar e mostrar algo como OLHA EU EXISTO INDEPENDENTE DO QUE VOCÊ ACREDITE, mas outra parte de mim tinha medo de que eles pudessem fazer alguma coisa.
Eu não soltei da mão dela nem por um segundo, mas enquanto a gente andava no meio de todas aquelas pessoas e observava muitos casais se pegando até mesmo na frente de crianças, eu tive medo que qualquer um deles parasse a gente, ou perseguissem ou fizessem qualquer outra coisa só porque nós estávamos DE MÃOS DADAS! E isso não é vida, isso é loucura.
Ninguém ali olhou para essas outras pessoas se pegando pesado em público, ou para os menores de idade bebendo e fumando ou para os bêbados incomodando qualquer pessoa que passava ou assediando algumas mulheres, mas as pessoas olharam para nós porque as outras coisas eles podiam esconder, ou se fingirem cegos, mas o casal de namoradas que andavam de mãos dadas eles não puderam ignorar.
E eles não podiam ignorar porque nós cutucávamos a ferida de todos eles como ninguém mais ao redor fazia! E foi nesse momento que eu senti falta da minha Terra do Nunca. Porque lá nós podíamos fazer a mesma coisa, mas o meu maior medo seria o de ser assaltada (o que não deixa de ser ruim, mas são problemas de “pessoas normais”).
O que mais me surpreendeu em tudo isso foi que eu nunca havia passado por nada disso antes, e finalmente entendi todas essas pessoas que tem medo de ser quem realmente são por essas coisas. Como o ambiente influenciou em quem me tornei e as mudanças que sofri. Sendo que a minha pequena cidade seria apenas um exemplo de todo o mundo lá fora, de toda uma sociedade pequena, conservadora em todos os aspectos e em como eu sou um pequeno exemplo de algo que eles tentam reprimir e esconder, assim como fazem com o preconceito racial, ridicularização do feminismo, o estupro, a violência ou mesmo toda a sujeira política. Porque a cidade é pequena, mas todo o complexo de Brasil colonial e barões de qualquer porcaria que seja plantada, ainda é grande. E que apesar de continuar lutando pela minha igualdade, sinceramente, a cada dia mais eu não tenho certeza de que se cutucar a ferida poderia mudar qualquer coisa ali ou acabar criando uma pior em mim mesma.
Quem escreve: Meu nome é Carolina, mas apenas me chamem de Carol. Tenho 18 anos, vivo em uma cidade no interior de SP (e não, nós não passamos o dia vendo só as vacas pastarem... Também tem os cavalos). Faço História e estou indo para o segundo ano do curso, gosto muito de ler ficção fantástica ou qualquer outra com personagens badass, e de escrever. Sou viciada em café, "levemente" dramática e gosto muito de rock e blues, mas tento ouvir de tudo, juro. E como toda pessoa de humanas, eu vim pra esse mundo para problematizar e, se nada der certo, vender miçangas. Quem sabe algum dia a gente se topa por ai, não é? Afinal nunca se sabe. Mas de toda forma ainda sim é um grande prazer conhecê-lo.
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6 comentários
Isso realmente é algo maior do que pensávamos que fosse. Moro na periferia de SP, e quando estou no centro me sinto com mais vida, sendo eu mesmo, a verdadeira terra do nunca :) Eu imagino como é a dificuldade de cidade do interior, eu demorei tanto tempo para me aceitar, porque de certa forma vivo em um ambiente muito limitado!
ResponderExcluirEm casa eu sou um e fora de casa outro. E isso me mata, mas por enquanto é uma mal necessário, eu realmente sonho no dia que eu vou poder ser EU todos os dias da minha vida, dentro e fora de casa.
Que merda de mundo.
Espero que as coisas evoluam.
Beijo
Oi, Allan.
ExcluirPois é, bem difícil essa situação, às vezes só queria poder me libertar de tudo isso, jogar pro alto todas as coisas e dizer essa sou eu vocês gostando ou não, mas fazer isso sempre envolve mais coisas e acabo nunca fazendo. Concordo com você e também espero que o mundo evolua e rápido!
Abraços :)
Oi, Carol!
ResponderExcluirEu adorei seu relato, no sentido de que gosto de ler esse tipo de post aqui. vira e mexe me dói saber que tem tanta gente que VIVE isso como você viveu, e tantas vezes. Eu espero e torço pelo mundo que o Allan comentou ali
E AMEI sua bio. Como assim eles sempre esquecem dos cavalos?! akjhdgahdada (sou do interior também) de uma cidade que você chamaria de vila, provavelmente hahah Pessoas de humanas <3
Muito obrigada!
ExcluirParece até piada, mas só quem é do interior entende mesmo essas coisas rsrsrs
Abraços!
Carol, encontrei seu post linkado no Facebook, desculpe se isso por algum motivo a deixar desconfortável, mas eu realmente me comovi com o seu texto e quero comentar.
ResponderExcluirInfelizmente, viver numa cidade interiorana pode ser sim um aspecto muito limitador. A mentalidade por aqui é extremamente conservadora e provinciana (só um reflexo do Brasil como um todo).
Eu, como você deve saber, já estive e vivi outros contextos. Na minha cidade, em São Paulo, na Terra do nunca... Os olhares são os mesmos. Eu juro que sinto medo a cada olhar torto que recebo: tremo, o coração acelera, temo pela minha segurança, pela segurança de quem amo, pelas nossas vidas, de verdade. É um risco e medo real que assumo porque acredito que estar ali de mãos dadas com quem é especial para mim, independente do sexo, é um ato simbólico que carrega consigo muita luta e resistência. Mas não é fácil.
De todos os lugares em que estive a universidade foi onde me senti mais seguro, aceito e respeitado. Lá as pessoas me veem como igual e não me menosprezam por ser diferente. Na terra do nunca já me pararam para dizer o quão corajoso sou por não me esconder e o quão bonito é estar amando quem eu quero amar em meio de tanto ódio e preconceito.
Ter quer firgir ser aquilo que a gente não é, dói. Nunca fui fisicamente agredido por ser o que sou, mas ter que esconder o que sinto sempre me machucou muito. As pessoas não entendem que esse tipo de violência é tão cruel e perigosa quanto a violência física. Que impedir as pessoas de se manifestarem de forma autêntica também mata... Mas de forma mais lenta...
Não deixe que te silenciem, Carol (e eu sei como isso é difícil).
Você não está sozinha.
A sua família da Terra do Nunca te ama do seu jeitinho <3
~João
Obrigada, João! Sempre bom ouvir isso.
Excluirs2 s2 s2 s2 s2 s2 s2
=D