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A Vida Secreta das Abelhas: um livro otimista sobre crescer num mundo corrompido
8.8.15João Pedro GomesA Vida Secreta das Abelhas é um daqueles livros que eu consideraria não convencionais. Pra você ter uma ideia: eu pedi esse livro pra Cia. das Letras tem mais de um ano e só agora consegui me conectar com ele de verdade pra ler e terminar. E escrever essa resenha até parece meio errado, porque... como você faz pra julgar a história de uma garota que vive sua jornada emocional de descoberta de si e do mundo? Das estranhas e ilógicas relações humanas? É como chegarem em você e dizerem "então, colega, até agora sua trajetória foi dolorosa e cheia de superações, mas eu sinto que faltou isso, isso e isso. Sua experiência de vida merece três estrelas".
Não dá pra fazer isso porque essa história foi, como poucas que já li, extremamente viva. Apesar de não ter sido o melhor entretenimento possível, ela deixou tantas mensagens importantes que toda a demora pra ler valeu a pena. Livros não são meros produtos, no final das contas: são experiências que te afetam das mais diversas maneiras. E A Vida Secreta das Abelhas me afetou de uma forma bem diferente do que eu estava acostumado.
Aliás, talvez esse seja o motivo de eu ter demorado tanto pra me conectar com o livro: ele é tão focado na protagonista, sua história, sua evolução como pessoa e, o mais importante, de transmitir todas essas coisas vividamente, que a história em si acaba ficando meio em segundo plano e andando de forma mais lenta que o comum. O que não é necessariamente ruim e até dá um ar de clássico pra leitura (isso é um elogio), mas acaba sendo difícil de lidar quando você tá numa fase sem muita empolgação pra leitura. (Eu estava)
Mas é claro que eu não sabia de nada disso quando pedi o livro e foi a história que me chamou a atenção a princípio. Na trama conhecemos Lily Owens, uma garota branca de 14 anos que vive na Carolina do Sul com T. Ray, um homem tão ruim que não merece ser chamado de pai, e sua babá/amiga/segunda mãe, Rosaleen. Segunda mãe, já que a primeira morreu num trágico acidente quando Lily ainda era criança e não sabia de muita coisa além de borrões daquele fatídico dia.
E, é claro, do imenso amor materno que recebia de Deborah Owens enquanto ela ainda era viva.
Mas quando essa última informação — talvez a que Lily mais tivesse certeza no mundo — é posta à prova, ela decide reunir as poucas pistas que tem e fugir da vidinha sem significado que leva na fazenda de pêssegos de T. Ray para descobrir sua própria verdade.
O livro se passa na década de 1960, quando os EUA ainda tinham problemas fortes pra lidar com a emancipação dos negros, e o jeito como isso é trabalhado no livro é sensacional: inversão de papeis. Depois que foge, o destino acaba levando Lily e Rosaleen pra uma casa peculiar em outra cidade, onde, por acaso, só moram três irmãs negras. É onde todo o desenvolvimento da menina, a única pessoa branca da casa, acontece.
"'Mas ela é branca, August'.
Foi uma grande revelação: não o fato de eu ser branca, mas o fato de June talvez não me querer ali por causa da cor da minha pele. Eu não achava isso possível, rejeitar uma pessoa por ela ser branca. Uma onda de calor atravessou meu corpo. 'Indignação justificada', como diria o irmão Gerald. [...]
Antes de chegar no apiário, senti o pipi quente descendo pelas minhas pernas. Vi a poça se formando no chão de terra e senti o cheiro subindo na noite. Não havia diferença entre o meu pipi e o de June. Foi o que pensei quando olhei para aquele círculo escuro no chão. Pipi era pipi."
Essa foi a maior surpresa pra mim. Quando eu peguei o livro pela primeira vez, era quase como se estivesse buscando uma segunda versão de O Sol é Para Todos, que foi um dos livros mais incríveis que eu já li. E, de certa forma, foi o que encontrei. Os dois livros tem muitas semelhanças explícitas: as protagonistas serem duas meninas aprendendo como o mundo funciona. A sensação acolhedora e, ainda assim, com seu lado obscuro, das cidadezinhas onde a trama se desenrola. A abordagem da injustiça racial e até algumas poucas pessoas do local lutando como podem contra ela. É bem provável que a autora tenha se inspirado ali, de alguma forma, pra contar sua história.
Mas A Vida Secreta das Abelhas, apesar de não explorar alguns desses elementos tão bem, se torna algo diferente por não ser uma história sobre racismo. É uma história de crescimento, aceitação, amor, fé e família, que acaba tendo um pano de fundo histórico que permite esses questionamentos. Acaba que essa forma de narrar deixa tudo mais fluido — mas não menos profundo — e sem aquele ar didático que muitas histórias acabam tendo sem querer.
"'Se eu fosse uma menina negra...', falei.
Ele colocou os dedos nos meus lábios e senti um gosto de sal.
'Nós não podemos pensar em mudar a cor da nossa pele. É preciso mudar o mundo, é assim que devemos pensar', ele disse."
Ah, e o livro não chama A Vida Secreta das Abelhas à toa. Todo capítulo começa com uma citação de algum texto teórico sobre abelhas que se relaciona com o conteúdo que vai aparecer ali, e tem MUITA informação bacana. O livro se aproveita tanto do modo de vida desses insetos que dá até pra usar a leitura como uma forma de estudo (a autora usou informações reais, com referência e tudo), levando de brinde uma coisa que os livros teóricos não têm: metáforas sobre nossas próprias relações com os outros membros de nossas ~colmeias.
(Sem contar que a escrita toda da Sue Monk Kidd é totalmente sinestésica. Tinha horas que eu quase conseguia ouvir as abelhas, sentir cheiro de mel e pisar no chão brilhando de cera de abelha. É uma coisa surreal)
No geral, eu fiquei bem feliz quando terminei de ler. Foi um livro tão positivo. Se ele inverte as coisas com a questão racial, ele também faz isso na narrativa. Foi bom ver uma história diferente do padrão onde tá tudo bem no início e a criança cresce pra ver que o mundo é complicado. Lily teve as coisas complicadas desde que era um bebê, e o crescimento dela e é sobre aprender a ver que, por mais ruins que as coisas estejam, estar com as pessoas certas podem fazer elas melhorarem.
A Vida Secreta das Abelhas é um depósito de quotes, uma aula científica sobre abelhas e mel e uma lição de vida inesquecível. Se você for com um pouco de paciência e de coração aberto, não tem como não ser uma boa leitura.
"'Há coisas que não importam muito, Lily. Como a cor da casa, por exemplo, que diferença faz num esquema total de vida de alguém? Mas levantar o espírito de uma pessoa, isso importa. O problema das pessoas é que...'
'Elas não sabem o que é importante e o que não é', eu disse [...].
'Eu ia dizer que o problema é que elas sabem o que é importante, mas não sabem escolher. [...] A coisa mais difícil da vida é escolher o que importa'."
(Ah! Esqueci de comentar que o livro ganhou filme também, e que o elenco é sensacional. Eu só fui descobrir depois de ter pedido o livro, mas sempre revia ele quando precisava de uma motivação pra ler. Ainda não tive coragem de assistir porque: EMOÇÕES FORTES. Já fico meio mole só de rever o vídeo. Não sei se vou ver algum dia porque tenho medo do que pode acontecer comigo, mas fica a dica)
Autora: Sue Monk Kidd
Editora: Paralela
Páginas: 256
Ano: 2014
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