a importância de ler arte

A palestra destruidora do Neil Gaiman sobre Leitura e Obrigação

14.8.15Dana Martins


Quando eu li essa palestra, eu achei ela muito importante. Quis imediatamente cortar pedaços e espalhar pelo mundo (o que eu fiz). O tempo passou, esqueci da existência e fui ver a tradução que a Lorena fez para o ConversaCult. NOSSA SENHORA, O NEIL GAIMAN É DESTRUIR! Ele traz dados sobre a importância da leitura, ou sobre o nosso contato com informação. Ele também fala sobre imaginação. Criação. Transformação. Compreensão. As pessoas deveriam estar lendo isso na escola. E agora EU QUERO MUITO TER UMA BIBLIOTECA. 

Deixo você com a transcrição da palestra e o vídeo original, caso você prefira assistir. Infelizmente não tem legenda. :(


Nota: Em 14 de outubro de 2013, Neil Gaiman deu a segunda palestra anual da Reading Agency no Centre Barbican, em Londres. E isto é uma tradução livre da transcrição completa da palestra.

Neil Gaiman em: Por que o nosso futuro depende de livrarias, ler e sonhar acordado.


É importante para as pessoas dizerem de que lado estão e por que, e se elas têm alguma preferência. Meio que uma declaração dos próprios interesses. Então eu vou falar para você sobre leitura. Eu vou te dizer que bibliotecas são importantes. Eu vou sugerir que ler ficção, que ler por prazer, é uma das coisas mais importantes que alguém pode fazer. Eu vou fazer um apelo apaixonado para as pessoas entenderem o que bibliotecas e bibliotecários são, e para preservar ambas as coisas.

E eu sou tendencioso, obviamente e enormemente: eu sou um autor, muitas vezes um autor de ficção. Eu escrevo para crianças e adultos. Por cerca de 30 anos eu tenho ganhado a vida através das minhas palavras, principalmente por criar coisas e escrevê-las. É, obviamente, do meu interesse que pessoas leiam, que leiam ficção, que bibliotecas e bibliotecários existam, que ajudem a promover o amor pela leitura e lugares em que a leitura possa acontecer.

Então eu sou tendencioso como escritor.

Mas eu sou muito, muito mais tendencioso como leitor. E eu sou ainda mais tendencioso como cidadão britânico.

TUDO MUDA QUANDO LEMOS

E eu estou aqui dando esta palestra hoje à noite, sob os auspícios da Reading Agency: uma instituição de caridade cuja missão é dar a todos uma chance igual na vida, ajudando as pessoas a se tornarem leitores confiantes e entusiasmados. Que apoia programas de alfabetização, bibliotecas, indivíduos, e abertamente e arbitrariamente incentiva o ato de ler. Porque, eles nos dizem, tudo muda quando lemos.

E é sobre essa mudança, é sobre o ato de ler que eu vou falar hoje à noite. Eu quero falar sobre o que a leitura faz. Para o que ela é boa.

Certa vez eu estava em Nova York, e assisti a uma palestra sobre a construção de prisões privadas - uma indústria de enorme crescimento na América. A indústria da prisão precisa planejar seu futuro crescimento - de quantas celas eles vão precisar? Quantos prisioneiros estarão lá daqui a 15 anos? E eles descobriram que podiam prever muito facilmente, usando um algoritmo bem simples, baseado em perguntar qual é a porcentagem de crianças de 10 e 11 anos que não podiam ler. E, certamente, não podiam ler por prazer.

Não é uma relação direta: vocês não podem dizer uma sociedade letrada não tem criminalidade. Mas existem correlações muito reais.

E eu acho que algumas dessas correlações vêm de algo muito simples: pessoas alfabetizadas leem ficção.

Ficção tem dois usos. Primeiramente, é uma porta de entrada para a leitura. O impulso de saber o que acontece em seguida, de querer virar a página, a necessidade de continuar, mesmo que seja difícil, porque alguém está com problemas e você tem que saber como isso vai terminar...

... esse é um impulso muito real. E te força a aprender novas palavras, a ter novos pensamentos, a continuar. Para descobrir que a leitura em si é agradável. Depois de aprender isso, você está no caminho para ler tudo. E a leitura é fundamental. Houve boatos breves, alguns anos atrás, sobre a ideia de que nós estávamos vivendo num mundo pós-alfabetizado, em que a habilidade de fazer sentido com palavras escritas era de alguma forma redundante, mas esses dias se foram. Palavras são mais importantes do que nunca. Nós navegamos pelo mundo usando palavras, e assim como o mundo se move para a web, nós precisamos seguir, para nos comunicarmos e para compreendermos o que estamos lendo. 

Pessoas que não entendem umas as outras não podem trocar ideias, não podem se comunicar, e programas de tradução só ajudam até certo ponto.

A forma mais simples de ter certeza que nós criamos crianças alfabetizadas é ensiná-las a ler, e mostrá-las que a leitura é uma atividade prazerosa. E isso significa, em sua forma mais simples, encontrar livros que elas gostem, dar-lhes acesso a esses livros e deixar que elas leiam. 

Eu não acho que haja algo como um livro ruim para crianças.

Eu não acho que haja algo como um livro ruim para crianças.  De vez em quando vira moda entre alguns adultos apontar um subconjunto de livros infantis, um gênero, talvez, ou um autor, e declará-los ruins, livros que crianças devem ser impedidas de ler. Eu tenho visto isso acontecer repetidamente; Enid Blyton foi declarado um mau autor, assim foi com R. L. Stine e dezenas de outros autores. Histórias em quadrinhos têm sido acusadas de promover o analfabetismo.

É besteira. É esnobe e é tolice.

Não existem autores ruins para crianças, que elas gostem, queiram ler e procurem, porque cada criança é diferente. Elas podem encontrar as histórias que elas precisam, e elas trazem a si mesmas para as histórias. Uma ideia banal e desgastada não é banal e desgastada para elas. Esta é a primeira vez que a criança viu isso. Não desencoraje crianças a ler porque você acha que elas estão lendo a coisa errada. Ficção que você não gosta é a porta de entrada para outros livros que você pode preferir. E nem todo mundo gosta das mesmas coisas que você.

Adultos bem-intencionados podem facilmente destruir o amor de uma criança pela leitura: impedindo que leiam o que querem ou lhes dando livros dignos-mas-maçantes que vocês gostam. Vocês vão terminar com uma geração convencida de que leitura não é legal e, pior, que é desagradável.

Precisamos fazer com que as crianças cheguem até a escada da leitura: qualquer coisa que elas gostem de ler irá levá-las para cima, degrau a degrau, na alfabetização.

(Também não fazer o que este autor fez quando sua filha de 11 anos estava lendo R. L. Stine, que é adquirir um exemplar de CARRIE de Stephen King, e dizer que se você gostou desse, vai adorar este! Holly não leu nada além de histórias seguras de colonos em pradarias pelo resto da sua adolescência, e ainda me encara quando o nome de Stephen King é mencionado.)

E a segunda coisa que ficção faz é construir empatia. Quando você assiste TV ou vê um filme, você está observando coisas acontecendo com outras pessoas. Ficção em prosa é algo que você constrói a partir de 26 letras e um punhado de sinais de pontuação, e você, e você sozinho, usando sua imaginação, cria um mundo, enche de gente e enxerga através de outros olhos. Você começa a sentir coisas, visitar lugares e mundos que de outra forma jamais conheceria. Você aprende que todo mundo lá fora tem um eu também. Você está sendo outra pessoa, e quando você retorna para o seu próprio mundo, você estará um pouco mudado.

Empatia é uma ferramenta para criar pessoas em grupos, por nos permitir funcionar como algo mais que indivíduos auto-obcecados.

Você também vai descobrir algo de vital importância para fazer seu caminho no mundo. E isso é:

O MUNDO NÃO TEM QUE SER ASSIM. COISAS PODEM SER DIFERENTES.

Eu estava na China em 2007, na primeira Convenção de Ficção Científica & Fantasia aprovada da história da China. E em um ponto eu puxei um alto funcionário de lado e perguntei: por quê? Ficção Científica tinha sido desaprovada por tanto tempo. O que tinha mudado?

É simples, ele me disse. Os chineses eram brilhantes em fazer coisas se outras pessoas trouxessem os planos. Mas eles não inovam e não inventam. Eles não imaginavam. Então, eles enviaram uma delegação para os EUA, para a Apple, para a Microsoft, para a Google, e eles perguntaram às pessoas de lá que estavam inventando o futuro sobre elas mesmas. E eles descobriram que todas elas tinham lido ficção científica quando eram crianças.

Ficção pode te mostrar um mundo diferente. Pode te levar a um lugar em que você nunca esteve. Uma vez que tenha visitado outros mundos, como aqueles em que se comem frutas encantadas, você nunca mais ficará completamente satisfeito com o mundo em que você cresceu. Descontentamento é uma coisa boa: pessoas podem modificar e melhorar seus mundos, deixá-los melhores, diferentes.

E aproveitando o ensejo, eu gostaria de falar um pouco sobre escapismo. Eu ouço o termo ser propagado como se fosse algo ruim. Como se ficção "escapista" fosse um ópio barato usado por pessoas confusas, tolas, desiludidas, e a única ficção que vale a pena, para adultos ou crianças, é a ficção mimética, refletindo o pior do mundo em que o leitor se encontra.

Se vocês estivessem presos em uma situação impossível, em um lugar desagradável, com pessoas que te fazem mal, e alguém lhe oferece uma fuga temporária, por que você não aceitaria? E ficção escapista é apenas isso: ficção que abre uma porta, mostra a luz do sol lá fora, lhe dá um lugar pra ir onde você está no controle, com pessoas com quem você quer estar (e livros são lugares reais, não se enganem); e, mais importante ainda, durante a sua fuga, livros também podem lhe dar conhecimento sobre o mundo e sua situação, armas e armaduras: coisas reais que você pode pegar de volta na sua prisão. Habilidades, conhecimentos e ferramentas que você pode usar para escapar de verdade.

Como J. R. R. Tolkien nos lembrou, as únicas pessoas que investem contra fugas são carcereiros.

Outra forma de destruir o amor das crianças pela leitura, é claro, é se certificar de que não há nenhum livro por perto. E não lhes dar lugar algum para ler.

Eu tive sorte. Eu tive uma excelente biblioteca local enquanto crescia. Eu tive o tipo de pais que podiam ser persuadidos a me deixar na biblioteca quando iam para o trabalho nas minhas férias de verão, e o tipo de bibliotecários que não se importavam de ter um garotinho desacompanhado voltando à biblioteca infantil todas as manhãs e fazendo seu caminho através do catálogo, procurando por livros com fantasmas, ou mágica, ou foguetes, procurando por vampiros, ou detetives, ou bruxas, ou maravilhas. E quando eu finalizei a biblioteca infantil, eu comecei com os livros adultos.

Eles eram bons bibliotecários. Eles gostavam de livros e gostavam que os livros fossem lidos. Eles me ensinaram como requisitar livros de outras bibliotecas em empréstimos inter-bibliotecas. Eles não eram esnobes quanto a nada que eu lia. Eles apenas pareciam gostar do fato de que tinha esse garotinho de olhos arregalados que adorava ler, e falavam comigo sobre os livros que eu lia, eles encontravam para mim outros livros em série, eles me ajudavam. Eles me tratavam como outro leitor - nem mais nem menos - o que significa que eles me tratavam com respeito. Eu não costumava ser tratado com respeito quando era um menino de oito anos.

Bibliotecas são sobre liberdade. Liberdade de ler, liberdade de ideias, liberdade de comunicação. São sobre educação (que não é um processo que acaba quando saímos da escola ou universidade), sobre entretenimento, sobre criar espaços seguros e sobre acesso à informação.

Eu me preocupo que aqui, no século 21, pessoas não compreendem o que bibliotecas são e o seu propósito. Se você entende uma biblioteca como uma estante de livros, pode parecer antiquado ou desatualizado em um mundo em que a maioria, mas não todos, os livros impressos existem digitalmente. Mas isso é, basicamente, perder o ponto.

Eu acho que isso tem a ver com a natureza da informação.

Informação tem valor, e a informação certa tem um valor enorme. Por toda história da humanidade, temos vivido em tempos de escassez de informação, e ter a informação necessária sempre foi importante, e sempre vale alguma coisa: quando cultivar culturas de plantas, onde encontrar coisas, mapas e histórias - sempre boas com refeição e companhia. Informação era uma coisa valiosa, e aqueles que tinham, ou podiam obtê-la, poderiam cobrar por esse serviço.

Nos últimos anos, nós saímos de uma economia de escassez de informação para uma movida pelo excesso de informação. De acordo com Eric Schimidt da Google, a cada dois dias a raça humana cria uma quantidade de informação equivalente a que foi criada do início da civilização até o ano de 2003. Isso é cerca de cinco exabytes de dados por dia (algo em torno de um bilhão de gigabytes), para aqueles que mantém a contagem. O desafio deixou de ser encontrar uma planta escassa que cresce no deserto, para ser encontrar uma planta específica que cresce numa selva. Nós vamos precisar de ajuda para navegar por essas informações, para encontrar a coisa que a gente realmente precisa.

Bibliotecas são lugares que pessoas vão para obter informação. Livros são apenas a ponta do iceberg de informação, eles estão lá, e bibliotecas podem fornecê-los livre e legalmente. Mais crianças estão emprestando livros das bibliotecas do que nunca - livros de todos os tipos: papel, digital e áudio. Mas bibliotecas também são, por exemplo, um lugar em que as pessoas, que não podem ter computadores, que não podem ter conexões com internet, podem ficar online sem pagar nada: extremamente importante quando o jeito de você encontrar empregos, se candidatar a empregos ou benefícios está migrando cada vez mais e exclusivamente para a internet. Os bibliotecários podem ajudar essas pessoas a navegar por esse mundo.

Eu não acredito que todos os livros vão ou devem migrar para as telas: como Douglas Adams me disse uma vez, mais de vinte anos antes do kindle aparecer, um livro físico é como um tubarão. Tubarões são velhos: existiam tubarões nos oceanos antes dos dinossauros. E a razão para isso é que os tubarões são melhores em serem tubarões do que qualquer outra coisa. Livros físicos são robustos, difíceis de destruir, resistentes a banho, funcionam no sol, ficam bem na sua mão: eles são bons em serem livros, e sempre haverá um lugar para eles. Eles pertencem às bibliotecas, assim como bibliotecas já se tornaram locais em que você pode ir para acessar ebooks, audiobooks, DVDs e conteúdo web.

Uma biblioteca é um repositório de informação e dá a todos os cidadãos igualdade de acesso. Isso inclui informação sobre saúde. E informação sobre saúde mental. É um espaço de comunidade. É um lugar de segurança, um refúgio do mundo. É um lugar com bibliotecários. O que as bibliotecas do futuro serão é algo que devemos estar imaginando agora.

Alfabetização é mais importante do que nunca, neste mundo de mensagens e email, um mundo de informação escrita. Nós precisamos ler e escrever, nós precisamos de cidadãos do mundo todo que possam ler confortavelmente, compreender o que leem, entender o tom, e se fazer entender.

Bibliotecas são realmente as portas para o futuro. Por isso, é lamentável que, por todo o mundo nós podemos observar autoridades locais fechando bibliotecas como uma maneira fácil de poupar dinheiro, sem perceber que isso é, literalmente, roubar do futuro para pagar o presente. Eles estão fechando portas que devem ser abertas.

De acordo com um estudo recente feito pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, a Inglaterra é o "único país onde o grupo mais idoso tem maior proficiência em tanto alfabetização quanto matemática do que o grupo mais jovem, além de outros fatores, como gênero, origens socioeconômicas e tipos de ocupações que são levados em conta".

Em outras palavras, nossos filhos e netos são menos habilidosos com palavras e números que nós. Eles são menos capazes de navegar pelo mundo, de compreendê-lo e solucionar problemas. Eles podem ser mais facilmente enganados e induzidos ao erro, serão menos capazes de mudar o mundo que em que se encontram, serão menos empregáveis. Todas estas coisas. E, como um país, a Inglaterra vai ficar pra trás das outras nações desenvolvidas, pois não terá uma força de trabalho qualificada. E enquanto os políticos culpam a oposição por isso, a verdade é, nós precisamos ensinar nossas crianças a ler e a gostar de ler.

Precisamos de bibliotecas. Precisamos de livros. Precisamos de cidadãos alfabetizados.

Eu não me importo - eu não acredito que isso importa - se estes livros são de papel, ou digitais, se você está lendo em um pergaminho ou rolando numa tela. O conteúdo é uma coisa importante.

Mas um livro também é o conteúdo, e isso é importante.

Livros são a forma com que nos comunicamos com os mortos. O modo como aprendemos lições daqueles que não estão mais entre nós, que a humanidade construiu, progrediu, fez conhecimento incremental, sem ter que reaprender as coisas várias vezes. Há histórias que são mais velhas do que a maioria dos países, histórias que há muito ultrapassaram as culturas e as casas em que elas foram contadas pela primeira vez.

Eu penso que nós temos responsabilidades com o futuro. Responsabilidades e obrigações com as crianças, com os adultos que elas vão se tornar, com o mundo que elas vão habitar. Todos nós - como leitores, como escritores, como cidadãos: nós temos obrigações. Eu pensei e vou recitar algumas dessas obrigações aqui:

Eu acredito que nós temos a obrigação de ler por prazer, em lugares públicos e privados. Se nós lemos por prazer, se os outros nos veem lendo, então aprendemos, exercitamos nossas imaginações. Nós mostramos aos outros que ler é uma coisa boa.

Nós temos a obrigação de apoiar bibliotecas. Usar bibliotecas, incentivar os outros a usar bibliotecas, protestar contra o fechamento de bibliotecas. Se você não dá valor às bibliotecas, então você não dá valor à informação, ou a cultura, ou a sabedoria. Você está silenciando as vozes do passado e prejudicando o futuro.

Nós temos obrigação de ler em voz alta para as nossas crianças. Ler coisas que elas gostem. Ler para elas histórias que já cansamos de ler. Fazer as vozes, tornar interessante, e não parar de ler para elas só porque elas aprenderam a ler por elas mesmas. Use o tempo de ler em voz alta como um tempo de conexão, criação de laços, como um tempo sem celulares a serem verificados, sem as distrações do mundo.

Nós temos obrigação de usar a língua. Para nos empurrar: para descobrir o que as palavras significam e como usá-las para nos comunicarmos claramente, para dizermos o que queremos dizer. Não devemos tentar congelar a língua ou fingir que é uma coisa morta que deve ser reverenciada, mas devemos usá-la como uma coisa viva, que flui, que empresta palavras, que permite que significados e pronúncias mudem com o tempo.

Nós escritores - e especialmente escritores para crianças, mas todos os escritores - temos uma obrigação com nossos leitores: a obrigação de escrever coisas verdadeiras, especialmente importante quando estamos criando histórias sobre pessoas que existem em lugares que nunca existiram - entender que a verdade não está no que acontece, mas o que isso nos diz sobre quem nós somos. No fim das contas, ficção é a mentira que diz a verdade. Nós temos a obrigação de não aborrecer nossos leitores, mais ainda, de fazê-los precisar virar a página. Uma das melhores curas para um leitor relutante é uma história que eles não conseguem parar de ler. E enquanto temos que dizer aos nossos leitores coisas verdadeiras, dar armas e armaduras, e passar qualquer sabedoria que tivermos acumulado durante a nossa curta estadia neste mundo verde, nós temos a obrigação de não pregar, não palestrar, não forçar uma moral pré-digerida goela abaixo dos nossos leitores, como pássaros adultos que alimentam seus bebês com larvas pré-mastigadas; e temos a obrigação de nunca, nunca, em circunstância alguma, escrever qualquer coisa para crianças que nós mesmos não gostaríamos de ler.

Nós temos a obrigação de entender e reconhecer que como escritores para crianças nós estamos fazendo um trabalho importante, porque se nós errarmos e escrevermos livros maçantes, que afastem as crianças da leitura e dos livros, teremos encurtado o nosso próprio futuro, assim como o deles. 

Nós todos - adultos ou crianças, escritores e leitores - temos a obrigação de sonhar. Nós temos a obrigação de imaginar. É fácil fingir que ninguém pode mudar nada, que nós estamos em um mundo em que sociedade é enorme e os indivíduos são menos que nada: um átomo na parede, um grão de arroz em um campo de arroz. Mas a verdade é que indivíduos mudam o seu mundo de novo e de novo, indivíduos fazem o futuro, e eles fazem isso por imaginar que as coisas podem ser diferentes.

"Se você não imagina, nada acontece." - John Green em Cidades de Papel

Olhe ao seu redor: eu to falando sério. Pare, por um momento e olhe ao redor da sala em que você está. Eu vou apontar algo tão óbvio que costuma ser esquecido. Isso: tudo o que você pode ver, inclusive essas paredes, foi em algum momento imaginado. Alguém imaginou que seria mais fácil sentar em uma cadeira do que no chão e imaginou uma cadeira. Alguém teve que imaginar um jeito de eu poder falar com vocês em Londres, agora, sem que todos nós ficássemos molhados pela chuva. Esta sala e as coisas dentro dela, e todas as outras coisas neste prédio, esta cidade existe porque, de novo e de novo e de novo, pessoas imaginaram coisas. Elas sonharam, ponderaram, fizeram coisas que não deram muito certo, descreveram coisas que ainda não existiam para pessoas que riram delas.

E então, uma hora, elas conseguiram. Movimentos políticos, movimentos pessoais, todos começaram com pessoas imaginando outro modo de existir.

Temos a obrigação de criar coisas belas. De não deixar o mundo mais feio do que encontramos, de não esvaziar os oceanos, de não deixar os nossos problemas para a próxima geração. Temos a obrigação de limpar nosso caminho, não deixar para nossas crianças um mundo míope, desarrumado, enganado e aleijado.

Temos a obrigação de dizer aos nossos políticos o que nós queremos, de votar contra políticos de qualquer partido que não compreendem o valor da leitura na criação de valores, que não querem agir para preservar e proteger o conhecimento, e incentivar a alfabetização. Esta não é uma questão de política partidária. Esta é uma questão comum à humanidade.

Albert Einstein foi perguntado uma vez sobre como fazer nossas crianças inteligentes. A resposta dele foi ao mesmo tempo simples e sábia. "Se você quer que suas crianças sejam inteligentes", ele disse, "leia contos de fada para elas. Se você quer que elas sejam ainda mais inteligentes, leia mais contos de fada para elas."

Ele entendeu o valor da leitura e da imaginação. Eu espero que nós possamos dar às nossas crianças um mundo em que elas poderão ler, e serem lidas, imaginar e compreender.

Obrigado por ouvirem.


e obrigada à Lorena Sabino por traduzir a transcrição.

TAGS: , , , , , , , , , , , , , , ,

MAIS CONVERSAS QUE VOCÊ VAI GOSTAR

10 comentários

  1. Sabe uma coisa que amo no Neil Gaiman? É sua capacidade de falar tudo o que eu preciso ouvir, e também de traduzir em palavras o que eu não consigo dizer. A vontade que dar é copiar e colar as coisas q ele fala para nunca mais esquecer.
    Uma coisa q eu sempre digo e acho que ele também conseguiu falar, mas de outra maneira é que todos gostam de ler, todos leem, as pessoas só precisam descobrir o que eles GOSTAM de ler, e parar de limitar a leitura a livros. Uma criança que ama ler gibis, e qdo alguém pergunta se ela gost de ler, ela diz q não. Faz sentido isso?
    É preciso achar o que te encanta como leitor e depois disso é um caminho sem volta. E tb é preciso expandir a leitura, não importa que o que vc gosta de ler seja bulas de remédios, vc tá lendo, vc gosta do que ler, vc ler. Você é um leitor.

    ResponderExcluir
  2. Destruidora foi eufemismo, pois essa palestra foi muito mais que isso. Incrível!

    ResponderExcluir
  3. Thank you! Sério, muito obrigado.

    Eu nunca tinha visto essa palestra, e ela é simplesmente genial.
    Eu nem tenho o que dizer. Só queria agradecer por ter chamado a minha atenção para o video... =)

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Esse comentário já é importante pra gente saber que fazer isso tem valor. :) Obrigada

      Excluir