Esse é um trecho da minha newsletter Hora da Conversa, onde eu reflito sobre o que acho que é natural pra mim ("meu gosto pessoal") e o meu preconceito. Decidi trazer pra o blog porque eu falo sobre conceitos que são importantes pra nossas conversas sobre representatividade e minorias. O foco é em cantores negros, mas pode ter certeza que isso serve para qualquer minoria ou diferença cultural. Até entre você e os seus pais!
Você já ouviu o último álbum da Nicki Minaj?
Eu não tinha ouvido. Eu não gostei (E ainda não gosto) de Anaconda, então não tinha parado pra ouvir. Nem o anterior, que eu gostava tanto de Super Bass (é a única música que eu sei cantar, aparentemente meu cérebro grava melhor rap. eu não sei nem cantar a música de parabéns toda, mas o primeiro verso de Super Bass? a qualquer momento!!!). Não fui atrás, não ouvi o resto. Nada.
Quando rolou todo o lance de Iggy Azalea e apropriação cultural (ainda quero estudar melhor isso), eu comecei a me questionar. Eu quase fiz um post sobre artistas que cantavam rap que eu gostava, mas me dei conta de que todos eles eram brancos e, tipo, algo me disse que isso não parecia muito certo.
Minha principal questão era: mas é natural!
Eu sou natural. Eu não consigo fazer aquele troço de colocar papel com os nomes de livros que você tem pra ler, tipo, tirar e ler o que foi sorteado, porque eu morro só de pensar em ter que ler livro obrigada. Eu vou ler/ouvir/assistir o que eu quiser, quando eu quiser e se eu quiser. Não sei explicar, mas é instintivo. Eu to passando, algo me atrai e eu vou atrás.
Tudo o que eu gosto funciona assim.
Faking It eu vi um gif no tumblr da Karma de coroa na festa da escola, foi uma sensação de AI MEU DEUS O QUE É ISSO PARECE QUE É BOM UMA SÉRIE HIGH SCHOOL, fui no IMDB onde eu li aquela sinopse que eu achei hilária:
"Depois de numerosas tentativas de se tornar popular duas melhores amigas decidem se assumir lésbicas, o que as torna no mesmo instante celebridades. Seduzidas pela nova fama, Karma e Amy tentam manter a farsa romântica."
Depois descobri que isso era muito ofensivo, muita gente da comunidade LGBT+ ficou puta com a ideia das personagens usarem o relacionamento falso pra ficar famosas, ainda mais que isso mexe com o estereótipo de que relacionamento entre duas mulheres é pra o prazer do homem e mais um monte de merda que eu aprendi a ver.
Enfim, eu não escolhi assistir Faking It, eu simplesmente fui.
(só pra contar: é a sinopse e a ideia que é ofensiva. a série mostrou que o objetivo não é reforçar estereótipos, é desconstruir e tem feito isso na temática LGBT+ muito bem desde então.)
Aí quando eu pensava no caso do rap branco, me questionava: como é que eu vou ouvir se nenhum me atraiu? Desculpa mundo, mas não vou ouvir música forçada não
Aí meu cérebro respondeu: VOCÊ VAI SIM E JÁ PODE IR BAIXANDO QUE VOCÊ VAI OUVIR AGORA E SE RECLAMAR VAI OUVIR A DISCOGRAFIA INTEIRA
Tá, não.
Um tempo depois eu tava no 8tracks e tocou uma música, chamada Bed of Lies, com uma Skylar Grey que tem uma voz bem legal. Eu nem sabia que era Nicki Minaj, eu fui por causa da voz dessa Skylar e depois, mesmo que a música fosse da Nicki Minaj, eu fui pesquisar sobre outros trabalhos da Skylar Grey (não encontrei nada relevante). Não sei direito como disso eu fui pra ouvir o cd inteiro da Nicki Minaj, mas eu fui.
Ah, acho que gifs no tumblr. Ela sempre aparece falando coisas legais.
Acho que aí eu ouvi meu cérebro. Tá bom, vou ouvir o cd da Nicki Minaj.
Tem músicas maravilhosas. Tem um monte de feats e tem algumas que eu não gosto não e outras que eu ainda não ouvi direito, mas o principal é: tem algumas músicas incríveis. Essa Bed of Lies mesmo, no rap ela dá um fora num cara que tá falando merda, algo tipo "não grita comigo", que transforma em uma letra de empoderamento muito boa. Diferente, por exemplo, do cd da Ariana Grande que eu fui ouvir hoje (eu estou extremamente viciada em Love Me Harder, é a minha música preferida do momento e por isso dei uma chance), mas já ouvi uma outra música que a garota fica gritando que adora a dor do amor.
Enfim...
Por que diabos eu não ouvi o cd da Nicki Minaj?
Eu tenho duas respostas. A primeira é uma coisa chamada cultura. O nosso sistema de valor está fundido à nossa cultura. Uma coisa bem simples que me mostrou isso esses dias foi que eu tava na praia com a minha prima (aparentemente, muita coisa acontece na praia) e passou um grupo de garotos com o cabelo descolorido pra ficar branco/amarelo. Minha prima comentou que era feio. Só que, ela mesma, estava com o cabelo pintado de azul. E sabe o que aconteceu quando ela decidiu pintar o cabelo? A mãe teve um ataque. No dia anterior minha prima comentou sobre a mãe achar horrível o cabelo dela.
Dana, você acha que uma pessoa em sã consciência ia pintar o cabelo pra ficar horroroso?
Não. É isso que diferencia a ~tribo~ da pessoa, a cultura dela, como ela vê o mundo e age. Dentro dessa cultura, aquele cabelo é uma coisa supeeer legal.
Só que no mundo real essas diferenças culturais estão por todos os lados se chocando e misturando e fundindo e se rejeitando. Eu não conseguiria virar pra o meu irmão e falar pra ele descolorir o cabelo daquele jeito porque: não consigo achar bonito. Eu não aprendi a ver beleza ali. Eu não vejo. Não tem valor e significado na minha realidade.
Isso se torna problemático quando nós temos uma mídia centralizada dizendo o que é bonito. A conversa sobre o mito da neutralidade do jornalismo fica pra outro dia. O que importa hoje é isso:
A pessoa pode fazer o rap mais bonito do mundo que a gente simplesmente não vai enxergar a beleza.
Não vai enxergar porque a gente tá criticando aquilo ali de acordo com o que a gente acha que é certo e bonito.
Mas isso não é algo que temos consciência. Não, se eu não vejo problema em usar um adjetivo, a pessoa que se sentiu ofendida é que tá inventando coisa. Definitivamente.
Então é claro que a pessoa lá na hora de dar o Grammy, vai julgar, se achando plenamente justa, a melhor música de acordo com o próprio sistema de valor. Como a maior parte do juri não tem o contexto cultural de uma música como o rap, não vê valor ali. (aliás, isso explica por que ficção científica e cultura jovem são renegados em premiações "sérias": eles não enxergam o valor)
(explica por que jovens não conseguem ler clássicos)
(explica por que muitas pessoas amam 50 Tons de Cinza e outras só faltam colocar na fogueira)
Eu não sei exatamente como mudar isso. Mas acredito que estar aberto a outras realidades e ter contato são importantes pra uma construção cultural mais ampla. Também é ter noção de que não deixa de ser verdadeiro só porque não é verdade pra você.
Ou poderia ter só colocado o vestido em vez de falar isso tudo. De qual cor é o vestido? Das duas. |
A boa notícia: nós podemos aprender a enxergar beleza e/ou respeitar a realidade do outro. E se você vai julgar algo, ainda mais em uma mídia com grande poder de influência, é mais importante ainda. Com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades...
Agora o segundo problema é mais alarmante: preconceito.
Eu não me interessei porque na minha mente existe uma noção fixa do que é o rap negro, do que é a Nicki Minaj e eu não dei atenção. A parte problemática é que essa noção não é verdade. Ainda mais porque a noção é moldada pelo sistema de valor de quem tá no controle (e já vimos que não são as minorias).
Por exemplo, quando filmes mostram pessoas de tatuagens como vilões, associa que quem usa tatuagem é bandido e, quando vemos na rua, ficamos com medo dos tatuados ou deixamos de ouvir as músicas deles.
E sabe como é esse rap negro Nicki Minaj? Como uma música pop normal muito boa. E com letras que não tão vazias (apesar de que eu ainda tenho que ouvir mais pra falar qualquer coisa).
(agora eu me pergunto se ela não teve que fazer uma música dentro do meu sistema de valor pra me fazer gostar)
Ariana Grande? Sofreu meu preconceito, mas bastou eu gostar de uma música que eu já fui atrás.
A Aline Valek fez uma newsletter pra explicar privilégio fazendo uma associação com níveis de videogame, que eu indico muito ler. Mas a questão é que pra uma mulher rapper como a Nicki Minaj fazer sucesso é simplesmente mais difícil porque ela tem que dar um jeito de desconstruir os nossos preconceitos.
Ou seja, em parte existe o nosso sistema cultura que nos ensina a valorizar determinadas coisas, em parte temos uma noção preconceituosa (ou seja, imaginamos algo que não é real) que nos afasta até do que poderíamos gostar.
-dana martins
Se inscreva na Hora da Conversa
TAGS:
CCdiscussão,
CCSociedade,
Dana Martins,
Faking It,
negros,
Nicki Minaj,
privilégio,
racismo,
rap
1 comentários
Gostei muito do texto, sobretudo de seus pensamentos e reflexões no meio dele. Se me permite, gostaria de linkar alguns outros textos que poderiam abranger e expandir ainda mais esse assunto que você tratou:
ResponderExcluirhttps://comabocanomundo.com/cultura-negra-iggy-azalea-vs-azealia-banks-e-o-hip-hop-a870a2c1aa80
https://comabocanomundo.com/cultura-negra-%C3%A9-bacana-mas-negros-n%C3%A3o-c61b093bc155
https://comabocanomundo.com/amandla-stenberg-racismo-reverso-globaliza%C3%A7%C3%A3o-e-o-roubo-dos-brancos-para-com-outros-povos-5cf730fa4e02
É uma série sobre Apropriação Cultural e Cultura Negra, que mostra responde algumas de suas perguntas, principalmente a respeito de rappers brancos e o preconceito da mídia e sociedade com artistas negros.
(PS: Sim, fui eu quem os escrevi, mas não leve isso como um merchan aqui no CC, hahaha)