O que eu acho interessante é que por mais que algumas histórias sejam boas em representatividade, que pareça se importar com isso, às vezes ela fica presa a alguns estereótipos. Parece que a nossa cultura é um campo minado e quanto mais você se conscientiza de uma parte, mais descobre que o problema é mais fundo ainda. Então vou usar o livro A Menina que Tinha Dons pra conversar um pouco sobre representação da mulher, personagens-experimento e um resultado infeliz que temos visto de ter mulheres poderosas em cena.
Se você não leu A Menina que Tinha Dons (aqui a minha resenha), esse é um livro que segue a luta por sobrevivência de 5 personagens: Melanie, Srta. Justineau, Dra. Caldwell, sargento Parks e soldado Gallagher. Melanie é uma menina de 10 anos não muito normal ("nem todo dom é uma benção"), Srta. Justineau é uma professora, Dra. Caldwell é uma cientista e os outros dois são militares.
Eu na minha resenha falei sobre o quanto livro busca mostrar os personagens de uma visão mais justa, mas ele ainda fica preso em alguns filtros. Vou usar meu post sobre 5 camadas de representação pra continuar analisando:
5- Precisamos valorizar mais características femininas
Sobre isso, não consigo pensar em nada pra comentar do livro. Nós temos três personagens mulheres, elas são diferentes entre si, todas são retradas como capazes da própria forma. Talvez o lado da Justineau, que é considerada uma mãe e reforça a parte emocional das decisões, seja com base em características femininas e o livro mostra isso de uma maneira positiva.
4- Precisamos de mulheres bem desenvolvidas
Isso o livro faz. Se não são bem, são pelo menos tão desenvolvidas quanto os homens.
3- Precisamos de mais diversidade
Uma garota com "dons especiais", uma professora e uma cientista genial. Pera, são todos poderes mentais? Não, Melanie tem mais do que poderes mentais, mas as outras duas sim. Enquanto os "poderes" dos dois homens não são mentais. É o que a Eleanor tava falando em Eleanor & Park. Isso é sobre um livro de 2014. (e um livro de um roteirista de X-Men)
Vale reparar que a diversidade funciona de diversas perspectivas. Como esse caso mostra, às vezes você tem mulheres de diferentes idades, raças, profissões e histórias, mas em outras aspectos elas continuam iguais. (tirando a Melanie, mas vou falar sobre ela abaixo)
2- Precisamos desconstruir o filtro do que feminino
Nessa parte, o livro tropeça. Algumas perguntas que passaram pela minha cabeça: Por que o sargento Parks não é mulher? Por que o soldado Gallagher não é mulher? Por que a Srta. Justineau não é um homem?
O Parks é aquele típico militar casca grossa (nem tão unidimensional assim, mas é), Justineau carrega nas costas o lado emocional da história. Características associadas a homem e mulher. Gallagher é um garoto medroso só, mas seu poder na história ainda é o físico.
Nas partes de pontos de vista dos personagens, na dos homens temos visões sobre sexo (porque os dois querem fazer sexo com a Justineau), fala de masturbação, pornografia ou ter interesse, enquanto as mulheres são assexuais até a hora que acontece o sexo e, ainda assim, é passado de uma maneira mais romântica ou simplista do que a dos homens.
Ou seja, o autor deu relevância às personagens que criou e desenvolveu bem as histórias delas, mas ainda não consegue quebrar o filtro do que é feminino (e masculino).
1- Precisamos de mais mulheres dizendo como mulheres devem ser
Bem, o autor é homem. E ficou no filtro do que é feminino em coisas que muitas mulheres poderiam ver que não é bem assim.
O que acontece quando a mulher fica poderosa, mas o pensamento não muda
E preciso acrescentar que no final do livro, Justineau é jogada pra fora de combate e passa metade da ação desacordada. Isso não seria um problema se fazer a mulher capaz desmaiar para o herói brilhar não fosse algo tão usado. Acho que isso é uma consequência dessa tentativa de criar personagens mulheres mais ativas, mas ao mesmo tempo não ter ideia do que fazer com elas. OH MEU DEUS CHEGAMOS NO FINAL, SE ESSA MULHER FICAR AQUI ELA VAI FAZER TUDO SOZINHA E O HERÓI NÃO VAI CONCLUIR SUA JORNADA (porque vai mesmo, tá no DNA dessas personagens) JÁ SEI, BATE A CABEÇA E DESMAIA.
Pacific Rim é um outro filme onde isso acontece, no livro Mundo Novo a garotinha treinada em luta quebra o braço (é mais razoável, mas ainda é interessante que a garota mais capaz fique fora de luta). Então você tem a personagem vitimizada que não fica mais em casa esperando o marido voltar, mas no fim do dia ainda se ferra e precisa ser salva. Um filme que consegue trabalhar essa questão de mulher capaz de forma legal é No Limite do Amanhã.
A mulher-experimento
Mas, pera, tem a Melanie! Ela está na ação final e é quem resolve tudo. Sim, mas ela é uma criança de 10 anos e ninguém espera que uma criança de 10 anos faça isso, a não ser que ela não seja tão humana quanto parece. A força dela vem dos poderes especiais. E normalmente são essas mulheres que quebram a barreira entre poderes mentais/força, porque aparentemente a mulher não pode ser forte por si só. Tem que ser outra coisa.
O que nos leva a outra tipo de personagem marcante: mulheres-experimento. Personagens como a Lucy (de Lucy) e Alice (de Resident Evil), que são mulheres incríveis que fazem tudo, mas tiveram seu corpo alterado pra fazer isso. Às vezes eu até fico na dúvida se elas contam como representação de mulher que luta poderosa, porque a única razão delas serem mulheres é que quando eles trabalham com o personagem-experimento o objetivo é reforçar que ainda há um lado humano sensível. Dá pra entender? O propósito é usar a imagem de "mulher" pra mostrar que ainda são vulneráveis e emocionais. É exatamente o papel da Melanie.
E eu tava só brincando, é lógico que elas contam. Mas ainda soa um alerta na minha cabeça o fato de só ser poderosa >por causa do experimento< e de jogarem com essa imagem do que é mulher (emocional, vulnerável) pra passar a mensagem.
o espírito da primavera tinha que ser mulher, é claro, porque |
Se eu indico a leitura de A Menina que Tinha Dons? É claro. Isso aqui não é nem uma reclamação, são coisas que ficaram na minha cabeça e deram vontade de conversar sobre como alguns livros mesmo quando tentam e acertam em alguns tipos de representação, se complicam em outros. E to tão feliz de finalmente ter citado as mulheres-experimento aqui!
-dana martins
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2 comentários
Adorei essa análise colocando em prática os pontos citados naquele outro texto. Eu nunca tinha pensado sobre essa questão da mulher-experimento. Realmente.
ResponderExcluirEu tô bem feliz com a representação feminina em The 100 até o momento (Estou pra ver o 1x09). O 1x07 foi Girl Power total! O ep foi todo movimentado por Raven, Clarke, Abby e Diana, sem colocarem isso de forma "ep especial das mulheres" :)
Acho que também esbarra nos filtros 3 e 2. Aliás, acho que 3 e 2 são mesmo os que mais pegam. Os homens sempre parecem mais brutos, enquanto as mulheres são as que pensam. Não lembro se vi mulheres como guardas na Arca e, dos que já apareceram, apenas homens fazem parte dos grounders assassinos (apesar de eu saber que existem mulheres no grupo deles tbm).
Comecei a falar de The 100 porque me deu vontade. Só isso.
Felipe <3 <3 <3 <3 <3 <3
ExcluirEu também to feliz! E mesmo coisas da S1 que eu fiquei com um pé atrás, na segunda eles melhoram. *se segurando pra não dar spoiler* *pensando em fazer um post sobre isso*
E eu nem tinha reparado que esse ep 7 tinha sido um especial das mulheres, mas foi! Na S2 tem isso, acho que até comento na minha indicação. Como você vê que a trama naquele momento é toda movimentada por mulheres, mas é uma cena de guerra e conflitos de guerra. Me marcou muito porque acho que nunca tinha visto isso. Porque é uma guerra comum com num filme épico de guerra, só que os rostos são de mulheres e não é nem que tenha alguma diferença por elas serem mulheres. É tão ;-; *emoção*
São os que mais pegam mesmo. Na S1 tem uma mulher que eu penso que é guarda, mas ela desaparece. É amiga da Abby nos primeiros episódios. Eu nem sei o que aconteceu com a personagem???
Mas isso que você comentou, de no geral ter essa impressão de homens mais brutos e mulheres pensam mais, é muito interessante. Mostra como precisa exigir um esforço pra fazer a mudança. Quando você pensa em um grupo neutro, você pensa em um grupo de homens e simplesmente coloca. Isso nem é necessariamente relacionado a realidade. Adoro ver grupos de fundos nesses filmes/histórias porque eles sempre são tomados por homens. E aí você repara que alguns se esforçam pra mudar (Ex: The Legend of Korra), mas a nossa mentalidade é tão programada pra colocar tanto homem, que acabam deixando escapar. Jogos Vorazes é outro que você vê em cima do muro (filme) (no livro é curioso, porque é estrategicamente igual. se você tem um homem, você tem uma mulher). Tinha mais, mas esqueci HUAHUAH (já escrevi com o João um post sobre essa neutralidade e vai sair aqui em breve)
Enfim, nisso também a S2 melhora. Apesar de ainda poder ir mais longe!