e como isso mostra que nós pensamos errado
Uma conversa minha (Dana) com o João sobre a nossa ideia distorcida de neutralidade e como até o pensamento de construção da língua portuguesa revela a desigualdade de gênero. Ah, só um papo comum de uma tarde de domingo...
"Tava falando com minha professora de morfologia sobre isso. Ela explicou que tudo na língua que termina com "o" é considerado de gênero neutro. "Prefeito", "amigo", qualquer palavra. Daí esse -o no final não indica que é do sexo masculino, é só uma vogal temática, que meio que tá ali pra completar a palavra. A hipótese mais aceita é que toda palavra nasce assim, daí quando surge a necessidade de uma mulher entrar numa posição indicada por essas palavras "neutras", colocam o -a no final. Daí, sim, a vogal indica gênero"
Essa explicação do o neutro da sua professora explica tanta coisa sobre a forma que a gente enxerga o mundo. A gente tem uma ideia do que é padrão. O que é padrão? Homem hétero cis branco. O mundo inteiro, inclusive a nossa linguagem, é baseada no homem hétero cis branco adulto com condições financeiras. Esse é o modelo de pessoa ideal no qual tudo é moldado, então isso é considerado neutro.
Por exemplo, se eu sair falando sobre um personagem que eu tive uma ideia, você vai pensar em um homem hétero cis branco a não ser que tenha algo que indique uma "diferenciação" do padrão (um "a" no final).
Mas isso é muito problemático, porque uma parcela mínima da população é esse padrão ideal e, até aqueles que se encaixam, talvez estejam abrindo mão de parte de si pra entrar no molde (ex: homem que é carinhoso fica mais bruto por causa disso). É algo tão bizarro, que a gente chama a ideia de considerar outras pessoas pelo que elas são (por exemplo, se preocupar em entender as diferentes sexualidades ou raças) de "politicamente correto", como se considerar pessoas como humanas-normais fosse uma dificuldade.
E é uma dificuldade, porque no nosso padrão básico elas não existem.
Clique para dar reblog. *cutuca namorado às 3 da manhã* é bem fodido que a gente pense que wall-e é um garoto. é um robô. chad? acorda, chad. escuta. não tem sexo. |
Quer ver um exemplo básico de "padrão"? Personagem de fundo. Pega um filme de ação e vê os personagens de fundo. O exército todo é formado por homens. Um ou outro filme coloca umas 2 mulheres no meio da multidão, mas a maioria é homem. Jogo de videogame? Oponentes são todos homens. (só tem um jogo em que há uma explicação que torna isso aceitável, e é o reboot de Tomb Raider) E se dão destaque para mulheres no grupo, é porque querem enfatizar que são vítimas.
É meio irritante como até eu vejo mulher como uma mensagem a mais. Por exemplo, em The 100 você tem bastante cena de "grupo de pessoas", a maioria é homem e se aparece uma mulher, ela acaba dando destaque. Eu sempre meio que penso que fica complicado colocar uma mulher em grupo, porque você espera que ela faça algo mais. Que ela seja algo mais. Não tipo "maravilhosa", mas que tenha alguma razão pra ela estar ali a não ser o fato de que ela faz parte do grupo e é um personagem de fundo. Então chega a ser "fácil" uma mulher dominar a história quando você coloca ela ali, porque ela sempre é inserida na história como um diferenciador. (a complicação vem do fato de que se é um grupo só de homens, você vê como "tanto faz", se tem uma mulher no grupo, você fica querendo saber sobre ela mesmo que seja personagem de fundo) (mas talvez esse destaque da mulher seja só impressão minha)
Voltando ao ponto, o que importa é que a nossa visão de neutro é de homens e nós nem pensamos muito nisso. Se eu criar uma rede social com imagem de Avatar antes do pessoal colocar que tem cabelo grande, vai virar uma rede social marcada para "mulheres". Se eu criar uma com uma figura careca, é "neutro".
O negócio é tão bizarro que a gente considera algo parcial, voltado para um padrão, como neutro.
"Ela até deu um exemplo absurdo sobre uma parente dela que trabalha na justiça e tiveram que colocar "oficiala de justiça" pra saberem que é mulher, TIPO! nem sei o que falar. Eu sei que dá pra defender do mesmo modo que defendeu o uso de presidenta pra Dilma: ela é mulher, é um jeito de reforçar o empoderamento. Mas num mundo ideal, não precisaria. Até porque "oficial" nem é uma palavra que precisa demonstrar gênero. Até passei a ver o "presidenta" de outra forma depois disso (porque as palavras terminadas com -e são as mais neutras). Gosto da ideia de palavras de gênero neutro".
Que diferença faz pra o cargo dela saber que é mulher? E o pior: mesmo que fosse, a ideia de buscar um termo "novo" no feminino só deixa implícito como todo o sistema foi criado sem pensar que uma mulher poderia ser capaz de assumir um cargo desse. Wtf.
-dana e joão
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10 comentários
Adoro esse tipo de discussão. :D
ResponderExcluirEu lembro que quando descobri essa regra de "se tem um homem, use o masculino mesmo se tiver milhares de mulheres", minha mente de criança que ainda não entendia machismo tinha dificuldade de entender e achava um absurdo (ainda acho, mas agora já uso com "naturalidade"). Uma coisa que eu sempre me pergunto é como funciona isso numa língua que é mais neutra (tipo o inglês), se em palavras neutras eles pensam nas duas possibilidades ou vão direto no masculino (ou dependendo do caso, do estereótipo. Por exemplo, se eu digo "nurse", eles pensam em enfermeiro, enfermeira, porque seria mais comum, ou tanto faz para eles o gênero?). É comum eu ler textos em inglês e supor o gênero de personagens e depois perceber que me enganei, mas não sei se um nativo faz isso.
Mas eu discordo um pouco da professora que diz que o -o seria vogal temática. Tem várias palavras que tem masculino e feminino que devem ter surgido ao mesmo tempo e para mim o -o indica gênero sim (o que não impede o masculino de ser o gênero neutro ao mesmo tempo). Pelo menos foi assim que aprendi nas minhas aulas de Morfologia. :P
Essa coisa de personagem é bem interessante. Desde que vi mais discussão de representatividade eu fiquei pensando sobre o fato de praticamente todos os protagonistas da Disney, tirando as princesas, serem homens, mesmo quando são animais que não tem características de gênero (e a maior parte dos animais coadjuvantes é macho também). E agora lendo o post eu tava pensando que vejo a maior parte dos Pokémons como macho também...
E uma última observação: "O mundo inteiro, inclusive a nossa linguagem, é baseada no homem hétero cis branco adulto com condições financeiras" - eu sei que aqui o mundo pode não ser literal e sim se referir a todos os aspectos da nossa vida, mas nunca é demais lembrar que o mundo inteiro inclui muita coisa que a gente não conhece e nem tudo é baseado no homem branco. Essa é só uma perspectiva ocidental. :)
Enfim, comentário gigante, mas é sempre bom repensar algumas coisas, né? (um pouco triste também, porque a gente acaba vendo opressão em lugares que nem sabia que tinha, tipo em desenhos animados)
Adorei seu comentário, Marília <3 Eu lembro de questionar isso, mas nada demais e nem pensando que poderia mudar. Sobre isso do inglês... eu tenho a impressão de que eles seguem por estereótipo, mas o estereótipo é mais aplicado à cultura deles do que à nossa, ou seja, vamos supor lá que é comum ter muito nurse como homem, então eles vão associar a homem, o que pode ser diferente pra gente, que tem costume de associar nurse a mulher. Eu penso isso por relatos aleatórios que eu já vi na internet, tipo Jogos Vorazes que até a parte em que a Katniss se voluntaria pra ir no lugar de irmã para os Jogos, não dá pra saber exatamente que ela mulher. O nome dela "Katniss" já parece masculino e como é narrado em primeira pessoa não tem muita referência a ela mesma pra ter marcação de gênero. Então não imaginam uma pessoa sem sexo, colocam a primeira imagem mental que tiver. Uma coisa interessante é que eu li um livro em inglês que não dá pra saber o sexo do protagonista de nascença, o autor fez desse jeito propositalmente. Então ao longo do livro às vezes eu imaginava garota, às vezes eu imaginava garoto. E eu tenho uma visão bem clara de como a pessoa protagonista é, mas não dá pra afirmar o gênero e isso nem importa. Resumindo: quando lemos algo formamos uma imagem mental de acordo com o que previamente conhecemos. Se eu falar que alguém muito forte você não vai imaginar uma pessoa magrelinha com os ossinhos a mostra, e provavelmente não vai imaginar uma mulher porque a força física é associada a homens culturalmente e isso que você sempre vê. A pessoa pode até deixar aberto pra saber se é homem ou mulher o "nurse", mas uma imagem mental principal vai prevalecer.
Excluir(eu leio bastante texto em inglês e no momento não to lembrando muito de nenhum caso em que tive problema assim, apesar de que eu acho que já aconteceu)
Também discordo do que a professora diz. Achei interessante que ela parece limitada o que aprendeu. Tipo, "falaram que é assim então é assim e não se muda"
Isso dos animais serem todos homens indico ler o texto que eu coloquei ali em cima, do BoJack Horseman, que explica bem isso. Animais até que dá pra passar por sexo, porque eles são seres sexuais divididos assim (alguns). Agora robô é sacanagem. HUAHUAHA (e tava pensando que a gente tem mais personagens animais e "coisas" do que mulheres)
E muito obrigada por comentar sobre esse "mundo inteiro". Definitivamente não é o mundo inteiro, foi o erro de tomar por "mundo" o meu mundo.
Então, na verdade eu só percebi essa coisa de pensar o gênero dos personagens em inglês quando comecei a traduzir textos, porque em geral são personagens citados tão brevemente que não tem pronome e quando a gente lê acaba não prestando atenção. Uma vez estava traduzindo e tinha uma hora que falava de amigos de uma menina. Só que a palavra era friends, e eu traduzi por amigas sem pensar muito. Depois que eu percebi que nada indicava que eram amigas (provavelmente estou acostumada com mais amizades do mesmo gênero, por isso pensei assim). E é triste, porque com medo de errar na hora da tradução, a gente acaba indo para o neutro (ou seja, para o masculino), mesmo que o autor em questão talvez estivesse pensando em mulheres. Por exemplo, na primeira edição de Harry Potter em português era o professor Sprout (porque nada indicava que era mulher, até onde eu sei)...
ExcluirToda essa questão de machismo na língua é complicada, porque também não vi até agora uma boa solução para deixar o português mais neutro... Usar o "x" em vez de "o" é legal porque faz a gente pensar nisso, mas não se aplica na hora de falar e acaba dificultando a leitura, ficar usando a/o toda vez (tipo falar todas e todos) é cansativo... Enfim, não sei se algum dia isso vai mudar, mas pelo menos tem bastante gente discutindo isso. :)
E essa coisa de o masculino ser o neutro é clara com os personagens animais mesmo: eu estava pensando que as animações que lembro tem animais protagonistas do sexo feminino são Nem que a vaca tussa e A fuga das galinhas - animais em que o gênero faz grande diferença...
Quando eu falei de Harry Potter, quis dizer o Harry Potter e a Pedra Filosofal, não sei se ficou claro. Como no segundo livro a Sprout tem mais destaque, perceberam que era uma mulher e corrigiram nas edições posteriores de HP1 (mas não tenho certeza absoluta que foi assim, é só suposição)
ExcluirAdorei as questões que vocês discutiram aqui! Só queria fazer um comentário de defesa em relação a minha professora de Morfologia, que é uma pessoa maravilhosa e uma das melhores docentes daquela universidade: ela deixou implícito que não concorda com essa divisão de masculino neutro e até usava um tom sutilmente irônico pra falar em alguns momentos. Sinto muito se isso não foi citado no comentário que eu fiz.
ExcluirÉ que também tem uma certa questão de ética docente de não tentar impôr nada quando se trata de ideologia e fazer o aluno pensar por si só. Ok que nós todos sabemos com clareza a nossa posição em relação a questões como essa (principalmente analisado assim, de forma extralinguística e focada no aspecto social), mas o que ela fez foi expôr as duas visões sobre o assunto e nos incentivar a escolher o lado que achamos mais correto. Tenho certeza que ela é uma pessoa crítica e que só expôs os fatos de forma neutra para não interferir em nosso modo de ver as coisas. Tanto é que depois da aula eu fui falar com ela sobre essas tentativas de neutralizar o gênero das palavras e ela foi totalmente incrível, me incentivando a pesquisar o assunto.
Aliás, esse é outro assunto interessante que citado aqui em cima. Falei pra ela de casos em que trocam o -a e o -o por -e (tipo "menine" ou, como a Bells aqui do CC adora falar, "amigue"), mas ainda assim fica restrito a poucos casos. O que a gente faria com o artigo, por exemplo? Não dá pra trocar por "e" também, já que ele tem outras funções na lingua e poderia ser facilmente confundido. É beeem complicado. O jeito é ir amenizando esse "machismo linguístico", se é que eu posso chamar assim, do jeito que dá (usando "gente" e "pessoal" em vez de "todos" e coisas do tipo) e rezar pra que surja uma solução (ou, no mínimo, uma conscientização) desse problema num futuro próximo.
E, Marília, eu comecei Morfologia esse semestre e ainda não entramos em estudos aprofundados sobre gênero. Foi mais um comentário geral/introdutório sobre o assunto. Mas a professora disse mesmo que há uma divisão dos teóricos entre considerar ou não o -o um marcador de gênero, embora a maioria considere como vogal temática mesmo. Ou talvez seja só diferença de formação, quem sabe? Seja como for, o assunto é interessante demais pra ser esquecido e eu volto pra comentar mais sobre assim que tiver mais bagagem teórica (:
E eu pensei recentemente também sobre essa coisa de gênero em tradução e: !!!!!!!! Meu deeeeus, deve ser um problema. Não é a à toa que dizem que a língua muda toda a forma de categorizarmos e darmos sentido ao mundo.
Seu comentário me fez pensar várias coisas, então: obrigado!
Sem problemas, João, eu também não sei muita coisa de Morfologia. Só achei curioso porque tinha aprendido de outra maneira e não sabia que essa teoria ainda estava em uso (minha professora chegou a citá-la, mas com ironia também, como se já estivesse ultrapassada). E digo isso no aspecto mais prático de separar em morfemas mesmo, porque no fundo a teoria tem sim muito a ver com como a gente vê a realidade (mundo machista, língua machista).
ExcluirE obrigada a vocês que criam esse tipo de discussão. :)
Que texto ótimo. (E os comentários também!!!)
ResponderExcluirQuero refletir mais sobre esse assunto.
eu apenas: adoro seus comentários assim. refletir mais em que sentido? no momento minha cabeça só pensa vácuo
ExcluirGalera, me deem uma luz aqui. Na parte do Wall-e, quando na tradução ta escrito que ele não tem sexo quer dizer que o robô é assexual ou não tem gênero ou qualquer outra coisa que eu ainda não saiba?
ResponderExcluirBem, supostamente tudo isso e o fato de que ele nem tem órgão sexual. Ou seja, ele não é feito pra ter atração sexual (assexual) (no filme inclusive só mostra atração romântica), ele não tem tem nenhum órgão sexual então não é macho nem fêmea e ele também não deveria ter gênero, porque é um robô.
ExcluirAcho que o interessantee é que o exemplo mostra como gênero é mais algo imposto culturalmente do que algo "biológico". Desenho animado pega pedaço de madeira e coloca bigodinho e diz que é homem. Pega um pedaço de lata e diz que é mulher. Wall-e nem a Ava deveriam ter gênero. Poderia ser um filme que trata eles como... bem, o que são. Mas aí eles vão e colocam nos personagens o que eles acham que o gênero deve ser e como deve se comportar.
E isso é um reflexo do que é feito a todo instante, o que é mais preocupante. Nós estamos dizendo para as pessoas como elas devem ser comportar, independente delas quererem/gostarem/serem aquilo.
Fui embora, mas acho que expliquei lá no início. HUAHUAHA