"Velhinha, meio surda, meio cega, mas ainda cheia de charme." |
Hoje meu presente de aniversário de dezessete anos atrás veio a falecer. Acompanhar seu ganido durante a madrugada passada, em que convulsões continuas terminaram de paralisar seu já debilitado corpo, vai ser difícil de esquecer. O mundo está mais escuro e a morte dá mais um passo em minha direção, e eu me afasto dela rumo à loucura. Mas da escuridão em que me encontro, quero trazer luz também aos bons fatos. Certamente não será somente essa memória triste que irá me acompanhar de agora em diante.
Pois eu lembro de tudo. Lembro de quando eu vi ela pela primeira vez, sendo atormentada por outro filhote no canil, um filhote que quase me convenceu a leva-lo, não fossem meus sábios pais influenciando minha decisão. Lembro de quando dobramos os papéis com opções de nomes e deixamos ela escolher o que queria. Escolheu Ebony, pois compartilhava o negrume com a madeira de ébano. Lembro de quando botei meu ouvido em seu peito para escutar seu coração batendo acelerado, foi o primeiro que ouvi além do meu próprio. Lembro de pegá-la nos braços e rodopiar no quintal da casa velha, sob o olhar de diversas babás. Lembro de quando nos mudamos para nossa casa de São Paulo, cujo terreno tinha dois níveis. Ela saiu correndo e saltou de um a outro sem hesitar, uma queda de quase dois metros. Suas orelhas se abriram e parecia um Dumbo voando. Mas não voava realmente, caia com estilo – e isso ela tinha muita, era uma magistral dama em corpo canino. Sempre muito elegante e delicada, mesmo quando se entusiasmava demais e, depois de pegar impulso na rampa do quintal, não conseguia parar e ia escorregando direto para dentro do banheiro (deixávamos a porta aberta com medo dela dar com o focinho nela, mas vez ou outra isso foi inevitável.)
Lembro de tantas vezes ter brigado com quem lhe deixava subir escadas sozinha. Sua raça tem problemas crônicos de coluna e eu era incapaz de não considerar isso toda a vez que ela pedia para ir ao andar de cima. Aliás, é indescritível como entre humanos e animais há uma comunicação fluida e coerente depois de um tempo de convivência. Eu a entendia tão bem quanto ela a mim. Lembro de como, através dos anos, dava para sentir cada vez mais os ossos da sua coluna calcificando e saltando por baixo da pele. Lembro do dia em que cheguei em casa para saber que ela tivera o pescoço prensado no portão automático. Precisou receber respiração boca-a-focinho do meu pai para reviver. Desde então, sempre fugiu quando alguém ficava em pé por cima dela – talvez pensasse que fosse o velho portão vindo finalizar o serviço. Lembro da vez em que enfrentou o rato que se alojou em nossa casa – e das muitas injeções que teve de tomar depois. Lembro de seus filhotes, de balançar os cinco na rede de casa enquanto engatinhavam pelo seu colo. Lembro de seus outros cinco filhotes. Me pergunto se eles estão bem, embora só conheça o paradeiro de dois. E aí, infelizmente, não deixo de lembrar que eles também partirão de suas respectivas famílias um dia.
Lembro de como ficou deprimida quando nos mudamos de novo, achando que tínhamos abandonado ela. Mas sua depressão durou poucos dias e logo já estava correndo atrás das pombas que ousavam pousar no quintal. Lembro de quando pensou que estava grávida e ficou triste quando se provou que não estava. Lembro como pulava de um sofá ao outro e se estirava pedindo carinho. De como procurava nossa mão e a cutucava caso por ventura parássemos de acaricia-la. Lembro de como andava rente ao sofá em que meu pai estava deitado para que ele não a visse, quando sabia que estava bravo com ela – e o resto da família acompanhava a operação contendo o riso, é claro. Lembro como comemorava assim que o carro de meus avôs virava a esquina, de qualquer casa em que estivéssemos. Lembro do dia em que ela surrupiou um salame italiano vindo direto da Itália – e de que ela passou meses de castigo graças ao feito. Odiava água. Destruía almofadas por hobbie. Comia absolutamente de tudo, mas nunca engordava.
Mas não faço segredo. Lembro de quando ela teve crises de vomito. Lembro de quando ela começou a ganir sem razão e tive de leva-la ao veterinário. Lembro de quando suas patas começaram a falhar. Lembro de quando começou a ficar surda (mas sempre escutava quando alguém abria algum pacote de comida) e quando começou a ficar cega (e eu comecei a ter de apontar para onde jogava guloseimas, pois ela continuava me cobrando por elas mesmo quando já estavam na sua frente). Lembro de encontrá-la babando e ganindo algumas noites, quando esses episódios ainda eram uma raridade, sem saber o que fazer. Lembro inclusive, e não sem certa ironia, de ler Marley & Eu, mais de oito anos atrás, e me sentir alarmado com a ideia de que ela estava ficando velha (mal sabia eu o quão resistente ela era). Enfim, tenho mais lembranças do que linhas para descrever todas. E há ainda as que só estão nas entrelinhas deste texto, escondidas à vista só para eu ler. Mas há a sempre a necessidade de escrever.
Dizem que os animais se parecem com seus donos. Bem, Ebony era uma cadelinha manhosa, temperamental, dramática, exagerada, carente de atenção e muito, mas muito esperta. Tomo uma comparação entre nós dois como um indescritível elogio, mas deixo para quem conheceu ambos tirar suas próprias conclusões sobre o assunto. E peço que pensem nisso, de verdade, pois é na memória de vocês que ela vive de hoje em diante.
Assim como na minha. E é por isso que eu lembro. E para lembrar, eu escrevo. E escrevendo, suprimo o grande medo que eu tenho de esquecer. Não esquecer dela – não acho que isso seja sequer possível - mas das miudezas escondidas entre os pelos e as patas. As histórias, cenas, expressões, poses, tropeções e problemas. Quero tudo junto e misturado, sem deixar nada para trás.
Pois tenho medo de que um dia, daqui há muitos anos, eu só seja capaz de lembrar que ela chegou a existir. E mera lembrança é indigna de tudo o que ela foi.
Então fica aqui um breve manifesto de sua breve vida.
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1 comentários
Meu Deus, Diego, que texto...
ResponderExcluirMeus sentimentos por ela.