"Já me perguntaram e já insinuaram que eu não tinha capacidade de ler "o senhor das moscas" por ler muito juvenil." - LISPECTOR, Clarice
A gente estava conversando sobre preconceito por causa da Semana Literária quando fizeram o comentário acima e aí eu fiquei com vontade de comentar sobre essa história de "ter capacidade de ler" aqui. Porque sabe de uma coisa? Talvez quem disse isso esteja certo.
As pessoas precisam ter capacidade para ler livros.
Mas o que muita gente esquece é que exige certa capacidade para ler qualquer tipo de livro, inclusive os juvenis. Tipo um romance YA e tal. Muitos de cara podem pensar "que personagem inútil, fica a história toda em dúvida entre 2 garotos", mas nesse tipo de história os garotos normalmente são uma representação de dois tipos de vida que a garota vai levar e uma escolha de como ela quer viver, o que não é muito diferente de uma história moral de um herói em [insira aqui outro tipo de livro considerado importante], mas exige uma certa capacidade ver isso. Do mesmo modo que muitas vezes o sexo na série Orange Is The New Black, mesmo que explícito, não é um modo de sensualizar a mulher ou um temperinho pra deixar a história atraente. Pelo contrário, a série até coloca umas cenas bem cruas para desmistificar o sexo e a forma como a mulher é representada quando se trata de sexualidade. Então é, exige uma certa capacidade perceber o significado dos elementos utilizados pra contar história.
Voltando para o exemplo do romance YA: como é que garotas adolescentes têm a capacidade de enxergar algo que críticos formados não têm?
Eu, Dana, diria que é por uma questão de contexto. Você precisa ter um certo conhecimento de contexto para interpretar os significados. Os livros YA são escritos com símbolos que fazem sentido no contexto delas, enquanto significam totalmente outra coisa para os críticos. Então mesmo que estejam contando exatamente a mesma história que os livros endeusados pelos críticos, ou fazendo qualquer coisa extraordinária, eles não conseguem ver isso. Porque eles não têm a capacidade de entender. (o contrário também é verdade)
Eu não to aqui comparando qualidade, porque eu não acho que você consegue fazer isso falando de maneira geral. Eu só achei importante aproveitar a Semana Literária para lembrar dessa questão: o leitor importa.
Eu não to aqui comparando qualidade, porque eu não acho que você consegue fazer isso falando de maneira geral. Eu só achei importante aproveitar a Semana Literária para lembrar dessa questão: o leitor importa.
Quando alguém diz que outra pessoa talvez não tenha a capacidade de ler certo livro, talvez ela esteja certa. Mas quando ela usa isso para inferiorizar outro tipo de leitura, nem um pouco.
Todo livro exige uma capacidade de leitura e todo mundo pode aprender a fazer outras leituras. Além disso, todo mundo também pode aprender a ter capacidade de valorizar outras formas de leitura. (mas isso já é conversa pra outro dia)
Todo livro exige uma capacidade de leitura e todo mundo pode aprender a fazer outras leituras. Além disso, todo mundo também pode aprender a ter capacidade de valorizar outras formas de leitura. (mas isso já é conversa pra outro dia)
Então pra pessoa que insinuou que a pessoa lá em cima não tem capacidade de ler "O Senhor das Moscas", acho que ela não tem mesmo. E nem quem disse isso. Porque eu não acredito que uma única pessoa tem a capacidade de fazer todas as leituras que podem ser feitas de um livro. Mas mais importante, ao dizer isso a pessoa apenas atestou a própria falta de capacidade de ler uma história juvenil. E isso é irônico e seria até engraçado, se não fosse triste.
*e respondendo dentro do contexto, eu acho que a pessoa tem, sim, a capacidade de ler "O Senhor das Moscas" (nem sei se ela já leu), inclusive mais do que uma pessoa que já decidiu se cegar para certas formas de leitura.
-dana martins
Veja todos os textos da Semana Literária: Não julgue um livro pelo preconceito
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5 comentários
Meu problema (um deles) é com a palavra "capacidade" porque ele implica não o quanto a pessoa pode perceber/absorver daquilo que leu, mas sim que ela é burra.
ResponderExcluirParabéns pelo texto. Acredito que essa "capacidade" de ler certos livros além de ser algo que possa se aprender, é algo que depende do momento. Já li livros que naquele momento não me disseram nada, não entendi e nem absorvi nada, e em outros foi uma descoberta.
ResponderExcluirQuando eu tinha 8 anos não consegui ler Iracema, pois não tinha ainda "capacidade" de ler a obra mais famosa de José de Alencar, mas acho que isso se dá por causa da idade. Creio que a relação de alguém gostar e compreender uma obra pode estar relacionada a capacidade dela. Não é a toa que existem livros que só são indicados para determinadas idades. Mas a pessoa só vai ter certeza se é capaz ou não de ler determinada coisa se tentar.
ResponderExcluirEu não gosto de definir as coisas só pela idade, porque meio que dá a entender que é tudo uma linha evolutiva e forma de conhecimento só. São trilhões de formas de conhecimento que a gente acumula durante a vida. Tipo se eu tenho 15 anos e toco guitarra há 5 anos, sei mais do que o cara de 40 que começou agora. Mas eu também acho que existem outras formas de conhecimento que a idade facilita, que é tanta coisa que eu não sei nem se dá pra definir como "tocar guitarra." E de uma forma ou de outra, um adulto tem mais tanta informação acumulada do que uma criança, que ele tem mais referência para comparar e interpretar. Por outro lado, quanto mais novo, mais receptivo a novas informações você é, o que faz os mais jovens se abrirem mais para as histórias. Pra saber se consegue ou não é como você disse: tem que tentar.
ExcluirAchei bem legal o post, e me lembrou da Newsletter sobre as visões que cada um de nós temos sobre tudo. Fiquei curioso sobre as "formas de leitura".
ResponderExcluirE sim, precisamos de contexto, todos nós. É impossível um adolescente pegar todo o conteúdo de um livro do século XIX se ele nunca se interessou nem conheceu o contexto da época, assim como os críticos que você mencionou, que em sua maioria, se interessam cada vez menos em realmente entender o que se passa e levar a sério os questionamentos YA da vida.