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Uma História de Literatura e Exclusão

5.3.14Dana Martins


No post "10 razões para autores homens fazerem mais sucesso do que mulheres" eu falei que precisaria falar mais do motivo 9, sobre o mercado editorial e a literatura refletirem a nossa sociedade. Aqui está!

Nesse post eu reuni os comentários de Sebastian Ribeiro, Flora Castro e Ana Arantes lá na conversa do grupo Nerdfighters Brasil que formam uma ótima discussão sobre como o machismo - e desvalorização das autoras - é algo que vem sendo construído na nossa cultura com o tempo. Ainda completo com um comentário do Murilo no último post e o meu resumo geral. 

Sebastian Ribeiro:
Na aula de business editorial (que eu fiz no Canadá então era voltada pro mercado canadense, que não é muito diferente do americano), os dados que eu vi mostravam que esse efeito todo [Efeito John Green] é a regra na literatura como um todo, não só em YA: se contar todos os gêneros de ficção juntos, tem mais mulheres escrevendo e tem mais homens na lista de best sellers. E mais: as LEITORAS também são maioria (acho que isso é o senso comum, mas é um ponto importante).

Isso significa que (assim como quase todas as outras faces do machismo), não é um plano individual dos iluminatis malignos que mandam na indústria, mas sim uma coisa orgânica perpetrada por todos os envolvidos na indústria exceto as autoras, desde os editores até os leitores.

Dana aqui: É assustador, mas... o John Green é mais do que apenas um escritor e vale lembrar que nem Stephenie Meyer e a nem Suzanne Collins usam twitter. (o Rick Riordan tem 251.000) Quantos será que elas teriam?  ~ texto no Daily Dot

O que EU acho: isso vem de raízes anacrônicas.

Pensem lá nos anos 70, quando os movimentos feministas tavam engatinhando, não existia Facebook pra propagar informações desses movimentos, etc. Agora pensem em como deveria ser a indústria naquela época. E quando eu falo indústria, estou incluindo os leitores. Pensou em que merda que devia ser e já está agradecendo por ter nascido 20 anos depois? Ok. Nessa época, inferioridade feminina era senso comum. Normal todo mundo torcer o nariz big time pra qualquer coisa feita por uma mulher. O resultado mais do que óbvio: só livro escrito por homem vendia.

Agora fast forward pra 2014. Pessoal está lá trabalhando na Editora X. Talvez a pessoa do marketing seja até uma mulher, porque avançamos um pouco nessas décadas. Ela como boa profissional vai analisar dados pra pautar a decisão dela de qual livro promover. Ela vai olhar dados de anos anteriores. E qual é a tendência que fica se repetindo ano após ano por pura inércia? É, que só livro escrito por homem que vende. É uma coisa circular: se os livros escritos por homens vendem mais, todo mundo envolvido vai, mesmo que sem querer, seguir por essa linha de raciocínio se quiser vender livros. Desde o carinha da livraria quando vai recomendar livros, até o executivo da editora na hora de escolher onde investir o orçamento. Se em 1979, por exemplo, se pensava assim, em 1980 o pessoal repetiu o pensamento por inércia, e aí foi e foi e foi até 2014. Esse tipo de coisa (tendências da indústria) tem uma velocidade de mudança ainda menor do que o pensamento da sociedade, por ter dinheiro envolvido diretamente.

Se a mudança demora mais que o pensamento e o pensamento mais que a tecnologia... (Isaac Asimov é o nosso autor de março na Volta ao Mundo em 12 Livros!)

Concluindo: a situação consegue ser ainda mais atrasada do que o pensamento de hoje em dia. Mesmo gente mente aberta acaba perpetuando a coisa toda. Mas percebam que a primeira barreira já foi quebrada: tem mais mulher escrevendo do que homem. Agora só falta os leitores correrem atrás dessas autoras, ao invés de se manter nas listas de best sellers, que funcionam com tendências de décadas atrás.

Flora Castro:
Concordo tudo com que o Sebastian disse e acrescentaria ainda a mídia, principalmente jornais como o NYT [New York Times] que ajuda a colocar autores no topo com suas matérias.

Ana Arantes:
Eu acho que o Sebastian fez uma análise bem bacana. E eu acho que é um fenômeno meio universal isso, eu lembrei de um estudo que li esses dias sobre mulheres cientistas e acontece a mesma coisa. Se você pega os dados, mulheres são um pouquinho mais da metade dos cientistas, mas quando você olha quem são os primeiro autores dos papers, os chefes de grupos de pesquisa e prêmios científicos, aí pula pra mais de 80% de homens...

Sebastian Ribeiro:
Exato, e as mídias tradicionais sempre vão seguir as tendências que já estão aí, porque ninguém gosta de arriscar seu dinheiro e/ou emprego investindo em algo incerto. [eu não incluí aqui a parte que ele busca a solução, mas você pode ver o comentário completo]

Comentário de Obvio na nossa última postagem. Esclarecedor. 

Murilo:
E geralmente homens têm uma história literária mais antiga que as mulheres. O conhecimento escrito era privilégio de POUCOS homens. Portanto Homero não era Homera, todos os grandes autores Antigos eram homens e esses autores sem dúvida serão mais respeitados que Agatha Christie, embora ela tenha um número grande de leitores.

Se eu puder confirmar por fonte o que vou dizer, até posto algum link depois, mas homens estão mais dispostos a tomar mais riscos, possivelmente uma característica biológica. O mesmo vale para autores, portanto, ao passo que um número grande se destaca em vários segmentos literários, a maioria fracassa e nunca ouvimos falar deles. [comentário completo no último post]

Dana:
Unindo tudo isso, você vê que existe uma história de uma sociedade machista por trás da estruturação do mercado literário hoje em dia. Algo que vai além de como o valor da mulher é percebido, que nós apontamos no último post. Essa herança do passado nos dá a falsa sensação de que "as coisas são assim mesmo." 

Basicamente um diálogo onde a Viola (imagem) diz "é um novo mundo." Fiquei chocada quando descobri que esse filme recebeu Oscar de Melhor Filme e até de Melhor Atriz!

Você pega informações como a de que as mulheres eram proibidas de atuar em teatros na Grécia Antiga, ou mesmo no século XV. Alguém lembra do filme "Shakespeare Apaixonado"? A personagem interpretada pela Gwyneth Paltrow (imagem) quer fazer teatro e precisa se disfarçar de homem para poder atuar - e isso dá uma enorme confusão. Como, em um ambiente desse, é possível para as mulheres se destacarem? Só se for como bruxas, queimando em uma fogueira, porque esse era o tratamento que algumas mulheres que não se encaixavam nos padrões recebiam.

Não duvido nada que algum grande escritor do passado possa ser uma mulher que se disfarçou muito bem de homem. Mas nunca saberemos.

Achei legal também colocar o comentário do Murilo sobre "os homens estão mais dispostos a tomar mais riscos", porque é bem legal reparar que algumas características de "o que é ser homem" e "o que é ser mulher" que nos ensinam conforme crescemos acabam realmente influenciando em situações como essa. Eu nem duvido que exista uma parte biológica - estamos falando de uma uma cultura que originou de povos que durante séculos viveram com a base de "homens nas guerras" e "mulher em casa", e só sobreviveram aqueles homens que eram melhor na guerra e as mulheres que ficavam em casa. Mas...


Mas existe também uma parte cultural: menininho sai correndo fazendo loucuras, os pais: "ah, é garoto!" menininha sai correndo fazendo loucuras, os pais: "Isso não é coisa de menina! Fica aqui!" Para ver essas diferenças de criação, indico o poema Shrinking Woman da Lily Myers (parte acima) que explica de maneira incrível como isso acontece.

E cuidado ao argumentar com características biológicas: alguém poderia muito bem dizer que os negros são melhores para o trabalho braçal só porque eles resistem melhor ao sol - e com isso justificar a escravidão. Isso sem falar que mesmo características biológicas mudam.

Então, por hoje é só. Em breve conversaremos sobre Homens Feministas e com a Chimamanda Adichie (a mulher na primeira foto daqui!) conversaremos sobre o problema de uma história só com foco nas mulheres.


Acho que teve gente que não entendeu no último post (10 Razões...), então aqui está a explicação: 
Até agora, nós estamos apenas expondo uma situação e buscando entender de onde vem o machismo na literatura. Sim, as coisas são assim, estamos justamente confirmando fatos reais, mas que não precisam ser assim no futuro. Sim, o objetivo é repensar os nossos hábitos e tentar recalibrar o sistema de valores que diz que o trabalho da mulher é menos válido. Não, não estamos obrigando ninguém a deixar de ser machista ou sexista. E sim, queremos mostrar para as pessoas, assim como para nós mesmos, detalhes da nossa cultura que nos levam a excluir os grupos que não são considerados padrões. 

Como o Sebastian disse, eu não acredito que exista um grupo de iluminatis malignos orquestrando a dominação mundial dos homens. Isso é algo muito mais suave que nós, sem perceber e até sem querer, acabamos propagando no dia a dia. É muito mais uma questão de falta de informação ou informação mal contada. (e, pelo amor de Deus, nós não somos um grupo de iluminatis malignos orquestrando a dominação mundial das mulheres.) 

-dana martins

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4 comentários

  1. Bacana ver essa discussão rolando aqui viu! Compartilho muitas das opiniões expressas no texto: esse posicionamento da mulher, não só no mercado editorial, mas em todas as esferas da vida, é muito mais estrutural, orgânico, ligado à lógica de funcionamento da sociedade, do que ligado à capacidade, e mesmo à biologia feminina. Na verdade, o que temos são séculos de condicionamento, de adestramento, em "modos de ser homem" (saber se impor, ser racional, agressividade etc, ser dominante etc) e "modos de ser mulher" ( "saber seu lugar" = se sujeitar, falar docemente (mulher "agressiva não dá, homem nenhum vai querer"), ser delicada = ser contida, ser emotiva, e por ai vai), e esses modos de ser são estruturantes e estruturados, ou seja, nascem da e na sociedade e estruturam o comportamento dos individuos na sociedade, uma coisa bem ciclica mesmo. Lembrei de cara da Virginia Woolf no "Um teto todo seu" (tai alguem bacana da gente pensar pro Volta ao mundo em 12 livros né): "Uma mulher deve ter dinheiro e um quarto próprio se ela quiser escrever ficção". E por dinheiro e quarto, entendo que ela quis dizer independência, capacidade de manter-se. E nem isso bastaria, pois o mercado (ão só o editorial, mas também ele) segue a lógica machista que estrutura a sociedade. Enfim, essa conversa vai longe, muito longe. Mas que bom poder participar dela aqui!

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    1. E ainda acrescento sobre a Virginia Woolf: "entendo que ela quis dizer independência, capacidade de manter-se" e de se criar como indivíduo. Independência não só como poder pagar as próprias contas, mas de ser quem você quer ser. Não cheguei a falar nesse texto, mas sabia que o surgimento do quarto próprio foi um grande fator para o aumento do número de romances (livros)? Porque é um espaço individual que a pessoa é ~obrigada~ a desenvolver a própria personalidade. Cor da parede, móveis, blablabla. Um espaço pra se separar do mundo.

      Eu é que digo: muito bom você ter participado dela aqui!

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  2. Eu faço jornalismo e achei muito interessante o ponto que vocês falaram que a mídia ajuda a repercutir essas péssima "tradição". Curiosamente a maioria das turmas de jornalismo e da redação de jornais e revistas é formada por mulheres.

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    1. Eu faço publicidade, mas estudo numa escola de comunicação e no início todo mundo faz junto até escolher o (esqueci o nome totalmente. especificação?) E mesmo no começo a maioria já é mulher. E quando divide, continua a maioria de mulher e boa parte dos homens adoram jornalismo esportivo, isso sem falar que o número de homens homossexuais é alto. Estaria eu errada de imaginar que homens homossexuais são menos machistas? Talvez. Do mesmo modo que não é muito certo dizer que as mulheres são menos machistas.

      E algo marcante: a maioria é por mulheres, mas pegue uma revista e veja as funções, os homens são maioria entre as principais.

      É uma questão meio que de inércia cultural. As pessoas repetem sem nem ver, ou você cai em becos sem saída (como você vai falar de cultura clássica dando privilégio a mulher? sendo que há trilhões de grandes autores essenciais para meio gato pingado de mulheres que talvez nem sejam tudo isso?). Aí a gente acaba fazendo essa exclusão sem nem ver. O projeto literário do CC, a VAM12L, é um grande exemplo. 11 autores HOMENS para 1 mulher. Isso que a gente decidiu pegar os marcantes do passado e contemporâneos. Se a gente tivesse feito essa discussão ano passado, talvez não fosse assim, porque a gente ia reparar e fazer um esforço para equilibrar mais esse número.

      Agora pensa na quantidade de jornalistas por aí que nunca tiveram uma discussão sobre isso. E estão há dias sem dormir direito atrás da próxima notícia!

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