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Faroeste Caboclo: o faroeste é aqui e o caboclo somos nós

16.6.13Igraínne


Hoje eu resolvi fazer uma resenha um pouquinho diferente, porque eu posso. Only. Mas por que isso, Igra?, você deve estar se perguntando. Porque pra mim, um filme nacional tão bom quanto esse merece muito mais do que uma resenha. Eu não vou só falar do filme aqui, acho válido trazer outras coisas relevantes para dentro desse enredo. E eu nem gostava muito de filmes nacionais, acho que já mencionei isso na resenha de "A Busca", outro filme ótimo que, se você não viu, corre para a locadora mais próxima (ainda existem locadoras?*)
*em breve teremos mais a respeito disso.

Mas enfim, voltando à questão inicial, que na verdade é o filme tão aguardado "Faroeste Caboclo", eu queria dizer que vale cada centavo gasto - eu veria duas vezes se tivesse mais tempo na minha vidinha conturbada. O diretor René Sampaio constrói um João de Santo Cristo (Fabrício Boliveira) digno de palmas, e que faz jus ao personagem de Renato Russo na música de mesmo nome. A letra quilométrica, inclusive, pode não ser muito atrativa para quem quiser ir direto ao cinema. Confesso que eu não li a letra antes por simples questão de surpresa: eu gosto de assistir a um filme sem saber nada a respeito - no máximo o trailer. E convenhamos que quando a história já é mais ou menos conhecida do público, quanto menos se adicionar, melhor.

Eu cheguei a ler em uma crítica que "Faroeste" não é um clipe. E de fato não é. Posso estar enganada, mas a música que inspirou a coisa toda só aparece realmente no final - nos créditos. O que é ótimo, porque não faz com que o expectador antecipe nenhum acontecimento só prestando atenção ao que é cantado.

Ainda em outras críticas lidas, ouvi que o vilão Jeremias (Felipe Abib) haveria conquistado mais que o protagonista. Não sei bem se eu concordo integralmente, acho que na verdade é uma questão de equilíbrio. O vilão é tão bem construído - e imprevisível - que faz você se comover tanto quanto se comove com o principal. Não que você torça por ambos, não é isso: na verdade, os dois cumprem com o que é proposto. João te gera revolta e certa generosidade, além de uma vontade insaciável de defendê-lo; enquanto Jeremias te enoja a ponto de você querer simplesmente xingá-lo.

cês tão entendendo?

Ainda em relação aos personagens, Maria Lúcia (Ísis Valverde) é muito carismática; suas risadas e emoções são passadas de tal forma que você consegue se ver nela - os conflitos de um jovem que se sente deslocado. As cenas de sexo são bem feitas, e eu até diria que são poéticas, com closes nos lugares certos e o contraste da pele muito bem aproveitado. Em suma, apesar de seu papel ser fundamental para a trama, Ísis forma um equilíbrio tênue com Jeremias, e é algo difícil de descrever com outra palavra que não seja "revoltante".

Eu fui ao cinema com certa certeza de que não seria um filme muito ~~calmo~~. As cenas de violência deixam você com raiva até os olhos, embora eu acredite que o choque prevaleça na maior parte das vezes. Mas o fato real é que não deveria chocar, porque são coisas que, infelizmente, acontecem até hoje.

Já explico.

É por isso que eu não quis trazer esse texto como uma resenha comum. Porque há um mundo muito rico para ser explorado sob os panos. O faroeste começa lá: a primeira cena do filme antecipa todos os outros acontecimentos, e o close dos olhos lembra efetivamente àquele típico conflito entre xerifes num faroeste. Mas essa batalha acontece durante o filme todo, é isso que me incomoda. É uma batalha que não dura só os 100 minutos: dura a vida toda.

Porque, veja bem, sem querer ser radical (eu costumo deixar minhas opiniões tomarem muito a minha fala, mas vou tentar ser imparcial e pouco tendenciosa), acho que todo mundo conhece pelo menos uma pessoa racista (eu disse pelo menos, querido). Imagina só, você é branco, vive num bairro de classe média, estuda num colégio mais ou menos considerável. Esse é o meu caso. Mas você já contou quantos negros existem na sua turma? Quantos existiam no colegial? Você já parou para pensar nisso? Porque eu já.

João judging you. 

Quantos casais que você conhece são meramente parecidos com a combinação de Maria Lúcia e João? Pior do que isso: quantos pais você acha que aprovariam esse tipo de coisa? Sempre tem alguém que discorda, que diz que negro isso, negro aquilo, eu já ouvi até que "o suor do negro fede mais", o que é algo totalmente absurdo.

Você imagina isso triplicado, numa sociedade dos anos 80? Quanto mais se recua no tempo, mais há conservadorismo. Todo mundo fala por aí que a luta do momento são os homossexuais ou a passagem que aumentou. Concordo e apoio esse movimentos integralmente. Mas não se deve esquecer que outras lutas não chegaram ao fim. A das mulheres, a dos negros, a de inúmeras minorias...

Espera um minutinho. Minorias? Pois é, eu odeio (na verdade não suporto) essa nomenclatura. Mulher é minoria desde quando nesse país? Segundo o IBGE, em dados divulgados em 2010, o número de mulheres equivale ao número de homens em um dito empate técnico, isso para não dizer que (sim) nós superamos: 100 mulheres para cada 96 homens. 

E os negros? Negros são maravilhosos quando o assunto é futebol, todos adoram enaltecê-los em seu talento inigualável, o samba das mulatas é melhor, blábláblá. Mas ninguém quer contratar um negro para representar a empresa numa propaganda de creme dental. Não conheço um negro que jamais tenha sofrido racismo na vida. Não conheço, e se você conhece, por favor me apresente. Não conheço uma mulher que não tenha sofrido o estupro social. Se você conhece, favor me apresente. Assim como não conheço um gay que jamais tenha sido discriminado.

- O que você tem, João?
- Tô #xatiado.

Mas veja só como é a ironia do destino: se você é homem, branco e hétero, e ainda por cima político, pode resolver o que fazer com o feto gerado de um estupro - um ato de violência realizado contra a mulher que (claro) só pode ter acontecido por conta de um negro. Porque se formos levantar as estatísticas, negros estupram mais que brancos.

O cara responsável pelo estupro no filme é um homem branco, racista e hétero. Que coisa.

O Brasil é um dos países mais miscigenados do mundo. O caboclo está aqui, o negro e o branco estão aqui. Todo mundo vive junto, todo mundo casa, tem filhos, sonhos, todo mundo tem os mesmos direitos. João de Santo Cristo não é o negro coitado, ele é apenas um personagem. Mas o que ele sente - só por ser negro - não pode ser comparado ao que nenhum branco já sentiu.

Mas o que isso tem a ver com o filme, Igra?
O filme é um mar de atualidades, é isso que estou tentando passar aqui. Se passa na década de 80, mas poderia ter sido rodado nos dias atuais que não haveria quase nenhuma diferença. Troque a miséria de lugar, os políticos de nome e o tráfico de foco, que já temos 2013.

Por exemplo, houve recentemente em São Paulo a passeata pela legalização da maconha, que é uma droga dita como ~~leve~~. Sem querer dar a minha opinião quanto a isso, eu vejo a maconha do filme como a novidade, a onda, a vibe nova que todo mundo quer experimentar. É como um cigarro com um brinde: um trago que você não espera.

Cê aceita um baseado?

Mas a questão não é a maconha, coleguinha. A questão é o que ela pode gerar: se começar a haver drogado jogado na rua, você vai se incomodar, vai falar com o guardinha, pedir pra ~~ prefeitura ~~ tirar o indivíduo de lá, porque está ameaçando a sua segurança. Suponhamos que o governo faça isso... daí o problema acaba pra você, porque você para de ver, para de enxergá-lo, portanto você passa a não estar nem aí.

No Rio de Janeiro, recentemente, houve um problema com a cracolândia, um point de crack que deixava as pessoas apavoradas na Av. Brasil, principalmente porque muitos dos usuários, talvez sob o efeito alucinógeno, eram atropeladas na avenida, pois caminhavam à esmo. Legal, "vamos tirar os cracudos dali, dar tratamento". Pois então tiram eles de lá, levam para a clínica. Alguns fogem e se instalam em outro ponto da Av. Brasil. O problema voltou a acontecer? Voltou. Mas alguém reclama? Não, porque o local anterior foi abandonado e portanto deixou de ~~ incomodar ~~. Daqui a pouco aparece outra matéria denunciando e eles trocam de lugar por dois ou três meses, normal.

Isso sem falar que né, a droga pode sim ser um incrível comércio. Jeremias, no filme, sabia disso, Marco Aurélio (Antonio Calloni), um personagem que não aparece na música de Renato Russo, também sabia. Na verdade, considero Marco Aurélio como uma personificação incômoda do política que surgiria amanhã, ou seja, hoje, no século XXI. O trabalho sujo é apenas um: capturar alguém e jogar a culpa nele. De preferência um negro para soar convincente. Se ele for condenado é ainda melhor, veja bem, porque o culpado cumpre o pecado de todo mundo de uma só vez. Em tese o crime passa a deixar de acontecer.

Afinal de contas, a gente sabe que o faroeste do negro é a cidade inteira.

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